Clark Gable

O fogo chegava ao fim na folha-de-flandres em que se costumava assar castanha.  Pedaços de papel queimado esvoaçavam na brisa da manhã. Com o coto do cigarro  preso nos dentes, Magno assistia à cremação das manias da mulher. 
Clark Gable
01/07/2004

O fogo chegava ao fim na folha-de-flandres em que se costumava assar castanha.  Pedaços de papel queimado esvoaçavam na brisa da manhã. Com o coto do cigarro  preso nos dentes, Magno assistia à cremação das manias da mulher.  Acabara de fulminar os astros e estrelas de Hollywood, queimando, álbuns, revistas e fotos que povoavam a imaginação de Prazeres. Bigodinhos sem-vergonhas e beijos indecentes arderam no fogo do inferno.
Dionísia chorava diante de tanta maldade.
Prazeres chegou pelos fundos, abraçando ramos de pitangueira.  Fazedora de remédios, ofício aprendido com o avô, era conhecida até nos municípios vizinhos.  Às vezes, boticários diplomados vinham atrás dos seus segredos.
– Que é que ele tá fazendo, Dió? Assando castanha?
– Nada, dona Prazê… Seu Magno queimou os guardados da senhora, lá do quarto das ervas.
– Meus guardados? Então ele mexeu no quarto? O que foi que ele queimou?
– Foi tudo.  Revistas, aquele caderno grosso onde a senhora colava os retratos dos artistas, os retratos do caixãozinho de charuto e o da porta, tudo virou cinza.
Magno cumprira a ameaça.  Odiava aquele mundo de papel trazido pelo primo de Prazeres, um motorista de caminhão que viajava periodicamente.   Ela passara a deixar a casa por conta de Dionísia e também se descuidava dos remédios. Só falava em se mudarem para a capital; tudo por causa do cinema. A gota d’água tinha sido a falta do xarope que a mãe do delegado encomendara.  Era preciso dar um basta.
Os remédios, comprados por uma pequena janela do lado da casa, davam lucro. E ninguém podia meter o bedelho ali, no quarto das ervas; nem Magno. Prazeres era uma sacerdotisa que se movia sozinha no templo de suas alquimias. A recente invasão do seu espaço fazia com que ela se sentisse lesada, ferida no íntimo.
Num desânimo, deixou cair os galhos no chão do quintal. Olhou em volta na ilusão de salvar alguma coisa.  Na raiz da goiabeira uma capa de revista resistira pela metade. Abaixou-se para pegá-la, mas não valia a pena: o galã se salvara somente do nariz para cima, e aqueles olhos de mormaço ela sabia de quem eram: um certo Clarque, de todos o mais sedutor. Desde o dia em que  aparecera sorrindo numa das revistas, ocupara um lugar definitivo na galeria de Prazeres.  Ganhou um posto destacado na parte de dentro da porta e várias páginas de álbum lhe foram dedicadas.  No preparo solitário das poções, ele se tornou objeto de  paixão intensa, platônica, mas que fervilhava entre as paredes do quarto das ervas.
– Quem mandou você bulir no quarto? Isso já foi demais. – A voz tremia de dor e raiva. – Não precisava…
– Precisava! Carecia! Aqui não me entra mais revista. Pode avisar o seu primo.  Ele foi quem botou na sua cabeça essa besteira de morar na cidade, só porque lá tem cinema.    Ninguém vai sair daqui, saiba você, sinhá doida. Ninguém, viu? Pensa que lá vão comprar seus remédios?
– Iam comprar, sim, se a gente fosse. Você só pensa em você.
– O quê? Eu penso em tudo, na gente, na casa, não sou doido não.
Dionísia assistia  à discussão sem nada dizer.  A patroa tinha, de verdade, a cabeça inchada por aqueles homens bonitos, diferentes dos que elas conheciam (“Isso é que é macho, Dió”). E chegava mesmo a confessar que sentia inveja das mulheres das revistas, elegantes, lindas, parecendo estar sempre satisfeitas.
Muitas vezes, ela, Dionísia, era quem ia buscar as encomendas na casa de Luiz, levando o dinheiro que Prazeres escondia no quarto das ervas, para pagar ao primo.  Ele também trazia caixas de sabonete com fotos de artistas na embalagem. O marido se lavava com os sabonetes, sem saber de nada. E os bichos da casa com aqueles nomes esquisitos? Tirone era o gato; Errol, o cachorro; Joã, a perua branquinha; Dorotí, a égua da charrete, um papagaio chamado Bingue Crósbi. Agora, dessa vez, seu Magno tinha ido mesmo longe demais.
Magno não pensava assim. Ficara satisfeito.  O gesto extremo parecia ter dado certo.  Desde o dia da incineração, sentia novamente a casa sob seu relho.  A mulher reclamou a princípio, mas voltara aos afazeres habituais, experimentando novas receitas de xaropes e garrafadas; até uma fórmula de pomada recém-criada por ela havia sido testada em Doroti, curando a egüinha de uma ferida no lombo.  Os pedidos se multiplicavam.

Naquele domingo, Prazeres se preparava para ir comprar mel e cânfora no Pontal. Magno, depois do café, olhou, do alpendre, os coqueiros carregados.
– Vou desfrutar os dois, não passa de hoje.
Dionísia desaconselhou:
– Eu, se fosse o senhor, chamava um desfrutador ou esperava o Luiz.
A resposta veio áspera, no momento em que um resto de cigarro era atirado nas bananeiras.
– Não preciso dos seus palpites, Dionísia, nem careço do ajutório de nenhum cabra-de-peia.  E você – voltou-se para Prazeres, que  ia na direção do portão da rua – faça o meu cigarro antes de sair e tire metade desse encarnado dos beiços.
Somente Prazeres dominava a arte sutil de picar o fumo, encomendado a seu Joaquim de Arapiraca, e de envolvê-lo na palha do milho, já cortada e preparada.  Por isso o marido a elogiava em momentos de descontração.
Sem nada dizer, Prazeres voltou para casa, seguida de Tirone, que tentava se enrodilhar em suas pernas. Dionísia foi atrás, mas aguardou na sala, até que ela saiu  do quarto das ervas, quase sem batom, e lhe entregou o cigarro.
– Dê a ele, Dió.
– A senhora tá certa em  fazer o que ele gosta, dona Prazê – aprovava a empregada,  um meio sorriso no rosto escuro – seu Magno faz essas coisas, mas não é ruim.  De todo jeito, é o dono da casa. Pra viver bem, basta a senhora largar essas manias. Vai ver que é fácil viver com ele.
Do alto da charrete parada à frente da casa, Prazeres observava o marido. Com as duas mãos apoiadas no coqueiro e sustentando nos dentes o cigarro ainda apagado, ele mirava o topo, avaliando a subida.
– É… É fácil viver com o Magno, não é Doroti? Basta a gente ficar debaixo das alpercatas dele.

Quase légua e meia até a feira do Pontal. Nesse exato meio-tempo se deu o desastre. Ao voltar, Prazeres encontrou o ajuntamento de algumas vizinhas, que cercaram a charrete.  Num silêncio choroso,  ajudaram-na a descer.  Enquanto ela se deixava arrastar naquele bolo, Dionísia contava o ocorrido.
– Bem que eu  tinha prevenido.  Mas seu Magno era teimoso.  Não aceitava conselho. Sempre com o pito na boca, peitando todo mundo.
Uma vizinha lacrimosa abanou a cabeça: dona Prazê fosse forte.
Dionísia tinha visto tudo. Foi bem no final da subida. Quando o coitado botou a mão no primeiro cacho, derreou a cabeça como quem ficou  zonzo e caiu sem um grito.  Se estatelou no terreiro.  Ela foi correndo chamar o médico.  Alarmou a rua.  Os vizinhos acudiram.
Puseram o corpo na cama do casal e cobriram com um lençol.   Prazeres não se aproximou logo.  Dionísia cuidava de tudo (“Deixem dona Prazê. Ela tá passada, coitadinha.”).
Sentado à mesa de jantar, o Dr. João da Costa, trinta anos de Posto de Saúde, atestou com letra firme: “Óbito provocado por múltiplas fraturas em queda acidental.”
Noite de vigília.  Parentes vieram de longe fazer quarto ao defunto.   Mulheres rezavam. Outras coavam café e serviam com broa de goma.  Prazeres ora se sentava perto do caixão forrado de pano roxo, ora vagava pela casa e pelo alpendre, braços cruzados, olhos secos.  Alta madrugada, peregrinou pelo terreiro, sempre seguida de Dionísia.  À luz da lua, patroa e empregada, unidas, caminhavam devagar, olhos baixos.  Perto do coqueiro assassino ainda estavam o facão e a ponta do último cigarro, ambos  recolhidos por Dió, que atirou a guimba na gamela onde se juntava o cisco do quintal.
O enterro foi acompanhado por meio município.  Houve até discurso de  vereador.
Depois da missa de sétimo dia, enfim os preparativos para a mudança.  Dionísia ajudou a patroa a arrumar num caixote as latas, frascos e garrafas do quarto das ervas, que seguiriam com elas para a capital. Todos os recipientes tinham seus nomes e propriedades escritos em papel branco colado com goma arábica.  Apenas alguns frascos de sementes ou de pequenas folhas secas tinham números em vez de nomes e foram acondicionados separadamente em duas caixas de sapatos.  “Cuidado, Dió. Quando acabar, limpe as prateleiras”.

Casa e charrete vendidas por bom preço,  Prazeres se mudou, no caminhão do primo, levando apenas Dionísia, Errol e Bingue Crósbi.

Começo de noite. Luzes de embarcações tremem nas ondas pequenas da maré seca. O bonde barulhento percorre a avenida em frente ao mar.   As duas mulheres sorriem contra o vento; apontam os navios ancorados, os passantes, as casas.  A negra usa um vestido de seda vermelha; a rede da mesma cor segura a cabeleira crespa.  A branca, de luto aliviado (azul-marinho com florezinhas claras), paga as passagens ao condutor de cabelo escorrido (até faz lembrar Pedro Armendariz).  Depois, avisadas por ele,  descem no ponto do cinema.
Prazeres atravessa a praça, deixando para trás Dionísia.  Dali mesmo se extasia ante as letras luminosas que brilham no alto, formando a palavra “REX”.  No cartaz enorme sobre a marquise do prédio,  o nome do filme: “…E o vento levou”.
Luzes e espelhos por toda parte.  Vitrinas exibem cenas dos filmes programados.  Num dos nichos envidraçados, uma mulher muito branca e frágil leva um abraço apertado do homem mais bonito do mundo.
Prazeres estremece de alegria, se lembrando dos olhos chamuscados ao pé da goiabeira.  Esse reencontro resgata tudo o que o fogaréu  consumiu. Agora é o seu desejo que queima lá por dentro. Agora pode se sentir no lugar da mulher de porcelana. Nada a impede. Dionísia se aproxima.
– Olhe ele aqui, Dió. Valeu a pena, não foi?
A empregada, entendendo o rosto fascinado da patroa, concorda com a cabeça: tudo vale a pena e tudo tem sua serventia,  até a semente maligna do  eserê.
– O nome dele é difícil, mas eu sei, Dió…vou lhe dizer…
Nesse momento, duas moças bem vestidas param admirando a cena.  Uma põe o dedo sobre o rosto do artista e suspira: “Clark Gable…”

Marlene de Lima
Rascunho