Clara vésper

Conto de Wilson Sagae
01/12/2001

Saru nasceu no ano três do primeiro mandato do prefeito biônico na prefeitura de Curitiba, Paraná, Brasil. Sua casa, no bairro Bigorrilho — ainda não existia Champagnat, designação mais chique — era simples, de madeira banhada em óleo cru, com três cômodos, fora banheiro e cozinha. Antes de completar dois anos, no ano da loucura do presidente militar, quando morreram vários com e sem razões, ficou órfão e passou a ser tutelado por uma tia caçula de sua mãe. Só quando a madurez alcançou seu cenho descobriu os motivos do misterioso desaparecimento de seu pai e da morte desgostosa de sua genitora.

Santa Matilde, sua tia, logo que soube da infelicidade do menino, correu acertar junto às autoridades o processo de adoção. Ao inquirir o grande homem de cabelos ralos, descendente de famoso secretário de finanças corrupto, porque negava entregar seu sobrinho a seus cuidados, teve como resposta o dedo médio trespassando vaivém o círculo formado pelo dedão e o indicador da mão oposta. Diante do gesto obsceno — mesmo sendo prostituta não era destituída de orgulho e pudor — abandonou a grande sala recoberta com quadros de magistrados insignificantes para, com três largos passos, lascar poderoso chutão na porta de imbuia trabalhada e adentrar o gabinete do então vice-prefeito — seu cliente mais que regular. Após uma breve conversa, em que não faltaram súplicas e lembranças comprometedoras, um telefonema foi feito e, na mesma tarde, antes do sol se pôr entre os jovens edifícios ao redor da rua das Flores, Saru descansou consolado por jovens malfaladas donzelas. Ali recebeu o primeiro beijo nos lábios, assim como ouviu a primeira jura de amor provinda de mulher ou homem destituído de mesma genética.

Naqueles dias, seus braços ainda não eram grossos, seu corpo era imberbe e seus pensamentos perdiam-se em divagações despidas de qualquer fulgor. Preferia as brincadeiras puras das jovens quando, com línguas úmidas, acariciavam seu pequeno pênis, ainda cheirando a leite, divertidas com as reações orgânicas salutares. Diziam que seu gozo tinha o paladar adocicado feito mel de abelhas jatay.

Uma das donzelas em especial, de nome Clara, nutria profundo afeto pelo jovem conviva. Nas tardes de ócio, quando nenhum grande homem se dispunha a desfrutar dos prazeres primaveris de seus botões, Clara abraçava Saru e saía pelas ruas ao redor do Centro Cívico cantando canções pornográficas enquanto ensinava verdades verdadeiras ao atento acompanhante. Ela possuía, entre seus fartos seios, uma pequena mancha em forma de estrela, por isso também era conhecida como Vésper. Seu coração, capaz de pulsar apenas vinte e cinco vezes por minuto, era macilento e ritmava uma alma faminta. Não era como outras de seu convívio que adentraram a casa dos prazeres remuneráveis pela falta premente de proventos, não! Ela ocupava seu lugar pela mais insistente necessidade biológica de prazer. Dizia-se ninfomaníaca psicótica, incurável em qualquer consultório ou terreiro.

Nos anos da grande revolução, quando os grupos de Heavy-Metal despontaram no cenário artístico internacional, liderados pelo grande Marechal do ar, Led Zepellin, Clara veio a falecer em decorrência de uma aposta frugal. Jogou contra Santa Matilde ser capaz de alcançar o auge sexual mais vezes durante uma tarde de inverno do que todas as meninas no percurso de uma semana intensa. No dia seguinte, após serem informados os fiscais do livro Guiness, a questão se pôs à prova. Sem acompanhamento médico — pois naqueles dias não se fazia uso desses hábitos fru-frus — Clara Vésper abriu as pernas frescas desodorizadas com água de rosas afegãs. Muito antes que seu felizardo primeiro ajudante explodisse em gritos ululantes, ela já descontava três contrações gozosas. Diante das torcidas tricolor, verde e branca, colorada, unidas em apoio inédito, Vésper anunciava ao mundo ser a rainha sem coroa da fertilidade inútil. Durante o qüinquagésimo sexto coito, urrando entusiásticos, a multidão amontoada pelo quintal, pelo cômodo, pelas janelas, pelas portas, cantava em ritmo de carnaval o nome de sua ídola. “Vésper! Vésper! Vésper!” Entre cada montada, dando um refresco à xereca borbulhante, eram jogados litros e litros de essência concentrada de hortelã.

O sol foi seguindo seu rumo e a lua já estava presente, curiosa, com seu grande olho esbugalhado, quando os juizes anunciaram a centésima vez. Como já faltavam pintos, desesperados, várias viaturas policiais, antes restritas a controlar o trânsito de curiosos, saiu à cata de homens viris o bastante para sobreviver à Clara. Pelos rádios, alucinados, os coitados dos policiais choravam a inexistência de machos dispostos e xingavam desiludidos o baixo índice de progesterona entre os nascidos na terra das araucárias. Foi quando Santa Matilde lembrou-se do presídio do Ahú. Por meio de uma concessão especial dada pelo presidente do supremo tribunal eleitoral, cinqüenta dos mais perigosos e antigos detentos foram liberados para a prova. Apesar do cansaço que já se abatia entre suas coxas depauperadas, Clara se mostrou alegre diante dos novos ajudantes. Com flexibilidade espantosa, arreganhou-se e iniciou a segunda fase.

A noite estava alta. As estrelas nem piscavam para não perder lance algum. As máquinas fotográficas espocavam seus flashes e as câmeras de vídeo ferviam na constante troca de fitas. Os murmúrios não mais eram de excitação ou surpresa, mas apostas sobre qual seria o felizardo a receber o não da insuperável prostituta. E foi justamente em um desses momentos pagãos, quando um desfalecido pinto retirava-se derrotado, que aconteceu a tragédia. Apesar dos apelos feitos pelo doutor Hagi, médico de renome internacional por ter conquistado metade das mulheres freqüentadoras dos meios artísticos de Curitiba, Clara quis ir adiante; ainda que seu abdômen se mostrasse inchado ao ponto de veias saltadas e sua pele se assemelhasse a papel, ela alisou uma vez mais onde um dia houve pentelhos e acenou para o próximo da fila.

O odor de porra estava tamanho que obrigava os detentos a fazerem uso de máscaras de oxigênio. Estava na impressionante centésima quadragésima sétima chacoalhada de útero quando suas trompas soaram e o corpo lúteo desejou ser uma vesícula biliar, sem piedade ou prece, ao coro de um ânus bafejado de cerveja, seu corpo caiu prostrado; e justamente sob o imenso falo do porteiro do prédio Pedro I, o senhor Long John Silver, voluntário de última hora, que ela partiu sorrindo. No diagnóstico final estava como causa mortis sufocamento interno decorrente de superinchaço das parede abdominal agravada pela menstruação em eterno bloqueio por Dius com defeito.

Clara abandonou a vida para tornar-se história. Todas as suas amigas e companheiras de trabalho estiveram presentes e choraram durante os três dias de velório, período exigido pelo necrologista para que o corpo, mantido em pé, despejasse nos baldes plásticos os litros de esperma. (Conta a lenda que, na terceira manhã após o enterro, quando foram verificar o túmulo, o imenso pé de Romã ali plantado contava com a aparência de cem anos — talvez em decorrência de ter sido espermado com a força de 147 homens.)

Mas isso tudo é futuro, o certo é que naquele dia tranqüilo, quando os fatos ainda eram nada, caminhando diante do palácio da justiça, Clara sussurrou ao ouvido de Saru o grande segredo de sua vida, aquele trazido por ela de herança da sabedoria centenária de sua família pioneira na região. Aproximando seus lábios carmesins, titulados de fogo-pagão pelos admiradores incontáveis, assim ela falou no ouvido infante:

“Ontem cantei ao gozar, amanhã chorarei de prazer, hoje apenas caminho. Enquanto a aurora é nome, o sol incandesce meus lábios, quatro descobrem o ardor de serem tocados. Cresce, meu amor, cresce em todos os sentidos prometendo desejar meu corpo na juventude, na madurez e na velhice.”

Finda a jura de amor eterno, saiu correndo de costas por mais de cinqüenta metros para, com um salto inverso composto de três mortais frontais, agarrar-se a um galho de cinamomo e dar três reversões no ar antes de tocar o solo.

“Salve Nádia Comanecci!”, berrou a plenos pulmões.

Um casal idoso, recém-comemorados setenta e cinco anos de casados, presenciando a cena, com medo das conseqüências malévolas de um ato impróprio como aquele feito em árvore tão comemorada por poetas falecidos, atravessou a rua indo dar de cara com um imenso doberman que discutia horrores com suas necessidades. Inadvertidamente, largando a mão trêmula de seu amante renovado pela invenção do Viagra, a velha quis passar a mão por entre as orelhas aparadas do irascível animal. Sentindo o cérebro fumegar, açoitado pela pele ressecada em toque obsceno em seu crânio, com uma dentada ríspida e violenta, o bicho fê-la perder toda e qualquer simpatia pela espécie canina, mais a ponta do dedo médio. Sem poder gritar, por demais assombrada com tamanha mostra de associabilidade, a esposa infiel de trezentos e doze amantes catalogados no livro de são Pedro, acenou pedindo ajuda a seu fidelíssimo marido. Mas ele nada percebia, concentrava-se no ajustar de suas lentes trifocais na vã tentativa de acertar o foco sobre as coxas interminavelmente longas de uma doidivana mocinha na flor de seus sessenta anos. Não fosse a pronta intervenção de Saru, aproximando-se solene e acalmando o dentuço diante da estupefação de Clara, uma catástrofe maior poderia ter se seguido. Com uma docilidade suprema, ronronando felino, o cão abandonou a atitude ofensiva para cair de costas sobre a grama expondo as tetas inchadas de leite para os jovens filhotes paridos. Achando graça e lembrando-se do milagre da criação retratado na estátua de Rômulo e Remo, Saru abaixou-se e mamou rapidamente em cada uma das pontas leitosas. Satisfeito, arrotando satisfação, Saru e a cadela se levantaram e se abraçaram. Ali começou a se formar a fama do menino.

De retorno ao prostíbulo, correndo portas adentro sem conter a emoção, Clara encontrou toda a diretoria reunida ao redor da televisão que passava Jornada nas Estrelas e relatou o ocorrido às meninas e à tia incrédula. Fora a parenta, terminada a história, quando Saru barrigudinho entrou, todas foram acariciar o garoto na esperança de obter alguma graça. Afinal, quantas vezes se pode contar que os céus se abriram e anunciaram aos pobres mortais terrenos a existência de um menino cachorro? Não é o mesmo que um menino macaco mas, em termos de Curitiba, estava ótimo! E foram tantos abraços, tantos beijos, que o garoto principiou a sufocar — biógrafos tardios diriam que o excesso de amor quase o assassinou.

Apesar dos gemidos e dos agitos tresloucados de seus curtos braços, ninguém estava disposto a perder seu lugar junto ao milagroso moleque. Não fosse o desmaio, incapaz de suportar tamanha demonstração de afeto, faleceria bestamente.

Assustadas, elas se afastaram carregando nas fuças o susto e o medo pelo acidente provocado. De longe, sentada em sua poltrona papal, Santa Matilde gritou:

“Se ele realmente vale alguma coisa, vai acordar sem a necessidade de ajuda.”

Bastaram essas palavras para que os pequenos olhos castanhos se abrissem e Saru ficasse em pé novamente. Nesse momento, reconhecendo o inusitado, Santa Matilde jogou na cara do moleque o conteúdo de um copo de vodca Smirnoff. Ele lambeu e caiu novamente, dessa vez sob o efeito de sua primeira bebedeira.

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho