Cinzas

Conto de Richard Schwarz
01/05/2007

O relato a seguir foi encontrado em folhas de papel queimadas, nos escombros fumegantes de uma pequena cabana de madeira, de propriedade desconhecida. Juntamente com pedaços carbonizados de utensílios domésticos, estas páginas manuscritas e parcialmente destruídas são os únicos restos do incêndio. Não foi encontrado nenhum corpo na cabana, nem pegadas ao seu redor. Os fragmentos estão dispostos de forma em que parecem ter alguma continuidade e lógica, mas até mesmo isto não pode ser afirmado com certeza, pois as folhas não estavam numeradas. As demais páginas que se supõe que existiam e que possivelmente complementariam este registro foram destruídas pelo fogo. Todas as investigações, relatórios e análises relativos a este caso se mostraram inconclusivos.

“… de forma que eu nunca poderia imaginar isto naquele momento, e provavelmente nunca virei a saber. Já não sei há quanto tempo estou confinado aqui, parei de contar há muitos dias, pois não tenho muita esperança de deixar esta cabana de grossas paredes de madeira e sem janelas. Da mesma forma, também não faço idéia de quem aqui me aprisionou, ou da possível razão para tê-lo feito. Não tenho e nunca tive inimigos, sempre vivi uma vida pacífica, justa e honesta, a meu ver. Talvez seja uma vingança contra alguém de minha família ou algum de meus amigos, mas realmente não faço a mínima idéia. Evito pensar muito nisto para não enlouquecer, pois o medo e a solidão chegam às vezes a me confundir ao ponto de eu quase delirar, o que poderia facilmente me fazer encontrar razões que realmente não devem existir. Ou, se existem, estão completamente além de minha compreensão. O que não altera o fato…”

“Dão-me comida todos os dias, por uma pequena abertura ao pé da porta, mas nunca respondem a meus gritos e minhas perguntas. A única vez em que tentei esboçar uma fuga foi quando parecia ser plena madrugada, sem nenhuma luz ou barulho, forcei a porta com a pequena faca de manteiga, então escutei quatro tiros lá fora e parei no mesmo instante. Não quero morrer. Foi por isto que desisti, a partir daquele dia, de qualquer esforço no sentido de escapar, pois imagino que sou mantido em vigilância constante e ininterrupta, por pessoas que não hesitariam por um segundo…”

“Agradeço a cada minuto por estas folhas brancas e este pequeno lápis que achei aqui, pois agora pelo menos tenho um objetivo nesta cabana, que ajuda a me afastar do ócio e do nervosismo: registrar meus pensamentos. Se bem que sei que ninguém chegará a conhecê-los, apenas o fato de expô-los e conseguir registrá-los já significa muito…”

“… e isto para mim resume o porquê do existir, a razão da minha vida, da sua e de tudo o que vive e há de viver. Talvez por agora não tê-las, valorizo na medida exata a vida e a liberdade. Entendo quando diziam que precisamos perder algo para lhe dar o devido valor, e em geral para as pessoas é necessário mesmo perder o momento para compreender o custo do instante. E este instante nada mais é do que, na realidade, a Eternidade, que nos acolhe e estimula e que desperdiçamos a cada segundo. E só a compreendemos e a queremos de volta quando ela já passou por nós, zombeteira, deixando a sombra de suas conseqüências impressas em nossas vidas e mentes, apenas para nos lamentarmos do que poderíamos ter feito ou sido ou vivido. Os abraços não dados, as palavras não ditas e os sonhos não perseguidos…”

“Meu papel está no fim. Gritei a plenos pulmões, pedindo mais folhas, no momento em que me deixaram minha última refeição, mas não tive nenhuma resposta. Talvez não tenham mais. Talvez não queiram me dar. Talvez sejam sarcásticos, e achem que devo ser mais conciso… Só sei que agora comecei a escrever também nas bordas do papel, nos parágrafos, entre as linhas, em qualquer espaço que encontro. Escrevo porque é isto que tenho de fazer, entendo finalmente. Talvez por isto eu tenha sido aprisionado aqui. Sozinho, aqui, em silêncio, eu me reencontro e faço meu sentido. Aqui, sem mais nada ou ninguém, eu sou, eu vivo cada palavra, e, para cada signo ou idéia, preciso de cada espaço do papel, assim como os falcões necessitam de ar. Então vivo horizontalmente, verticalmente, diagonalmente, entre linhas, entre palavras, nos cantos, nas bordas, nos parágrafos, nas lombadas. Vou e volto, contorno, repasso, subo e desço, trespasso, apareço, invado cada milímetro que consiga, como se tivesse um direito indiscutível e inalienável a cada um deles, eles que se tornaram as conquistas que não terei lá fora. E cada linha de cada letra, cada volta, cada vírgula, cada espaço e cada ponto equivale a uma inspiração ou expiração de meu espírito. Vivo mais aqui do que jamais vivi anteriormente, em todos meus outros dias…”

“Está acabando a querosene da lamparina. Como somente me trarão comida amanhã, e não sei se me darão mais combustível se eu pedir, comecei a queimar as primeiras folhas que escrevi para ter luz e poder continuar escrevendo. Palavras alimentando palavras. Interessante. Mas, como sempre, as últimas são as mais importantes, porque estão mais próximas de mim agora, então queimo sem nenhum arrependimento as do começo, as mais planejadas, mais contidas. O que me interessa agora é justamente o momento, e é isto que opto por preservar, sacrificando o que já passou e, na verdade, não mais existe. E, aliás, será que houve um começo mesmo? Começo a me questionar sobre isto. E se houve um começo, haverá um fim? E, se não houve começo nem fim, haverá o tempo? Se houver, deve ser…”

“Fagulhas sobem das folhas queimadas. Estalam. Batem no teto de madeira. De repente, uma pequena chama azul ali se forma. Sorrio. Já não importa. O fogo interno que me queima é infinitamente mais intenso. A chama do teto se alastra, passa para a parede. Cresce. Meus olhos ardem e sinto que refletem o fogo, crepita laranja e negro em minhas pupilas, meus pulmões doem, tusso, a fumaça me invade e me é difícil respirar e pensar. Abano-me e sigo em frente. Minha letra já não tem a mesma firmeza, percebo, mas prossigo. É só o que me resta e só o que se espera do que um dia eu fui. Em um mundo de mariposas, poucas pessoas são borboletas. Dão a cor a todos os outros, dividem seu arco-íris, espalham seu reflexo vivo para salvar os que são cinza. São o fogo que não os queima, pelo contrário, revitaliza-os e os alimenta para que possam seguir em frente. Borboletas que forjam diamantes em suas almas e os distribuem gentilmente, como saborosos doces para as massas de pobres crianças famintas. E o fazem por diferentes razões. Por arte, por amor, por sexo, por compaixão, por esporte ou por ironia, entre outros. São os faróis deste mundo, pontos de referência aos que navegam sem rumo na existência, iluminando e guiando nossa raça rumo a…”

“Já não sorrio, gargalho. Percebo e entendo tudo plenamente. Já não quero fugir porque não há saída possível. Cai a primeira parede e vejo que o sol já nasceu há horas, já é dia alto lá fora. Eu poderia sair pela grande abertura, mas não. Não faz diferença. Na verdade, não tenho um segundo a perder. Não posso mais parar. Já não sou eu mesmo, aquele que um dia foi aqui confinado. Sou estas palavras. Ardo, vibro, significo e me misturo com elas. Olho para cima e vejo uma enorme torre de fumaça negra que se eleva lentamente desta imensa fogueira, e as fortes e intensas labaredas, como alegres línguas de fogo, dançam agitadas ao nosso redor. Elas sobem velozes até o céu e se misturam com o sol. Fecho meus olhos e concluo meu destino. Somos um só.”

Richard Schwarz

É publicitário e administrador de empresas.

Rascunho