Cinema

Conto de Amilcar Bettega Barbosa
01/04/2005

Era um dia como os outros dias e, consultando a planilha na pasta cheia de documentos, viu que lhe faltavam apenas duas visitas para finalizar a jornada e voltar para casa. Nunca conseguiria precisar o momento em que tudo aquilo começou, mas trazia muito viva a percepção da quase felicidade e do prazer que experimentava pela iminência de terminar mais um dia quando se abaixou para repor a planilha dentro da pasta e sentiu o sol do meio da tarde aquecer-lhe as costas e, ainda, quando se ergueu novamente e seu olhar acompanhou as duas bicicletas que deslizaram à sua frente como em câmara lenta, enquanto ele esperava o sinal fechar para atravessar a rua.

A moça ia na frente, e justo no instante em que cruzou diante dele, ela voltou o corpo para dizer alguma coisa ao rapaz que pedalava logo atrás. Foi nesse momento que uma grande mecha de cabelo cobriu inteiramente o rosto dela, invadindo inclusive o canto da boca, que sorria. O rapaz que pedalava logo atrás sorriu também. Quando ela tornou outra vez o tronco, retomando a posição anterior para se endireitar sobre o banco da bicicleta, e fez um movimento brusco com a cabeça a fim de livrar o rosto da mecha de cabelo que inclusive invadia-lhe o canto da boca, ele, o homem que esperava o sinal fechar para atravessar a rua e acompanhava com o olhar as duas bicicletas passando à sua frente como em câmara lenta, começou a sentir aquela bolha crescendo na garganta.

Ele atravessou a rua e já na outra calçada a bolha era insuportável. Entrou na primeira porta que viu aberta e, por sorte, não precisou explicar nada a ninguém, porque o lugar onde entrara era um cinema e uma sessão estava prestes a iniciar. Ao cruzar pela senhora que recolhia os bilhetes, já duas grossas lágrimas escapavam pelo canto dos olhos. Agradeceu aos céus pelas luzes da sala já estarem apagadas e o filme começando. Sentou-se na primeira fila, de costas para os outros espectadores. Quase ao mesmo instante, encostou o queixo no peito e deixou que as lágrimas viessem com força. Não fazia barulho, era um choro abundante, mas silencioso, ainda que os ombros sacudissem com uma insistência maior do que a desejada. Chorou sem parar, silenciosamente, durante todo o filme. E continuou chorando mesmo quando as luzes se acenderam e as pessoas começaram a deixar a sala. Já não se importava que vissem que chorava e agora até se permitia emitir alguns sons abafados. Continuou chorando e sacudindo os ombros até que a senhora, a mesma que recolhia os bilhetes, tocou-lhe o braço e, ajudando-o a levantar, disse “nós vamos fechar agora”. Ela apanhou a pasta que ele pusera sobre a cadeira ao lado e o acompanhou até a porta.

Ele continuava chorando.

A mulher se adiantou para abrir-lhe a porta e ele disse a si mesmo que deveria agradecer a gentileza daquela senhora, cujo vestido exalava um leve cheiro de naftalina quando ela se movimentava.

Mas não falou nada. Nem mesmo pensou muito naquilo. Porque a sua única vontade era de chorar. Nem olhou para a senhora. Pegou a pasta e limitou-se a sacudir a cabeça como se concordasse com alguma coisa ou como se tentasse um sorriso que não viria. Pegou a pasta e foi embora, chorando, e os ombros sendo sacudidos de quando em quando pelos soluços, que pareciam se intensificar.

Amilcar Bettega

Nasceu em São Gabriel (RS), em 1964. É autor, entre outros, de Os lados do círculo (2004), Barreira (2012) e Prosa pequena (2019).

Rascunho