Cinco Poemas de José Kozer

Leia os poemas traduzidos "Auto-retrato", 'Um dia feliz em um poema naif junto a uma porta envidraçada", "Os traços e a sombra", "Em sua pequena sem-vergonhice", "A morte retira a máscara, a cara, o crânio, o nada, e surge o Bom Deus" e "Das semelhanças"
Kozer não busca o breve, o conciso, o reduzido; ao contrário, ele é caudaloso, florestal, oceânico
01/05/2001

Tradução: Claudio Daniel

O homem de quatro mil poemas

O poeta cubano José Kozer (1940) é um dos maiores poetas vivos de língua espanhola, autor de uma obra que soma mais de quatro mil poemas. Radicado nos EUA, após uma curta estada em Málaga, na Espanha, Kozer pratica uma escritura mestiça, que mescla recursos do barroco e da modernidade, a tradição judaica e o oriente, o cerebral e o sensual. Sua obra é no fundo um único e imenso verso, em busca desesperada da linguagem total, do signo primevo, que é a própria divindade.

Autorretrato

Sobrio no soy, sordomudo tampoco. De salud no ando bien pero no
estoy enfermo: de dubitativa conformación esta cosa
del cuerpo. En su zona artrítica ahora reconozco su
aspecto menos engendro, más Teresa. No se me detuvo el
bolígrafo (adiós estilográficas, adiós péndolas) ante
la barbaridad de llamar engendro a un aspecto de este
cuerpo mío (mentí) (y miento por banda doble) aún
rebueno, me quedan bien las canas, las pocas patas de
gallina dan un toque de sabiduría a mi catadura, ese
gallardo, ese mirado, soy el verdadero yo: un yo
Cibola, yo Hespérides, soy argivo soy argivo (gritó).
Soy personificación del viento oeste a este (cuál) se
la metí a la harpía (gritó) barbas de guata, rizosa
cabezota del más fino tisú oropéndola, deja correr
(amada) tus largos dedos por esta encrespada cabellera
donde cada hilo aovillado se alarga sedal, saca del fondo
de la laguna al atorado manatí (amada). Lo dicho, no
soy sobrio; ¿agramático? No exageremos: la licencia
poética estará de mi parte hasta el Día del Último
Diálogo; sólo entonces callaré, y no gramaticaré, pues
Allá mandan. Aquí me quiero tanto que me comestiblería
yo a mí mismo, si pudiera (ya dije que no soy sobrio):
puedo serlo; así, un paso atrás pierna derecha, postura
del Arquero, ni arco ni flecha, ni etéreo quimono
reposado de seda, tampoco a la espalda un ibis amarillo
sobre fondo negro tres ideogramas diminutos al pie
de la pata en vilo del ave, nada, nada ave, nada pata,
nada pierna derecha atrás un paso, el paso de las
letras del Arquero sostenido por si acaso (¿habrá vida
ultraterrena?) podría aparecer Autorretrato.

Auto-retrato

Sóbrio não sou, surdo-mudo tampouco. De saúde não ando bem,
mas não estou enfermo: de conformação duvidosa essa coisa
do corpo. Em sua zona artrítica agora reconheço seu
aspecto menos monstro, mais Teresa. Não se me deteve a
esferográfica (adeus estilográficas, adeus plumas) ante
a barbaridade de chamar monstro a um aspecto deste
meu corpo (menti) (e minto duplamente) ainda
em bom estado, me ficam bem as cãs, os poucos pés de
galinha dão um toque de sabedoria ao meu aspecto, esse
galhardo, esse mirado, sou o verdadeiro eu: um eu
Cibola, eu Hespérides, sou argivo sou argivo (gritou).
Sou personificação do vento oeste a leste (qual) se
a meti na harpia (gritou) barbas de algodão, cacheada
cabeçorra da mais fina tela ouropêndula, deixa correr
(amada) teus longos dedos por esta encrespada cabeleira
onde cada fio contraído se alonga linha, saca do fundo
da laguna o atourado manati (amada). Eu disse, não
sou sóbrio; agramático? Não exageremos: a licença
poética estará de minha parte até o Dia do Último
Diálogo; só então calarei, e não gramaticarei, pois
Além mandam. Aqui, eu me quero tanto que me comestivelria
a mim mesmo, se pudesse (já disse que não sou sóbrio):
posso sê-lo; assim, um passo atrás perna direita, postura
do Arqueiro, nem arco nem flecha, nem etéreo quimono
repousado de seda, tampouco à espádua um íbis amarelo
sobre fundo negro três ideogramas diminutos ao pé
da pata suspensa da ave, nada, nada ave, nada pata,
nada perna direita atrás um passo, o passo das
letras do Arqueiro sustentado por se talvez (existirá vida
ultraterrena?) poderia aparecer Auto-retrato.

Un día feliz en un poema naif junto a una puerta vidrie-ra

Chirimías, un pianoforte en un campo de helechos.

Soy un recién llegado, bien de salud, sentado en la silla de
alcanfor en la postura del shogun.

El león imperial mira en alto la torre de un azulejo a otro
en el suelo rojo tacos blancos león y torre
azules, de la cocina: el gran azulejo
incrustado en la pared de la cocina mira
en alto desde un leopardo verde olivo
collarín sepia el espectáculo (salpicaduras)
de la luz del sol, en el suelo.

Ahora el aire tiene aire de recién llegado de haber sido conminado
a cítaras entre laureles de Indias.

La pera de agua que acabo de morder tenía el corpachón de buda,
litros y decilitros, aire y agua (dos decentes
animales) sufragan todo gasto del cuerpo.

Y la pura verdad es que la mujer del bosque tocando el armonio está
muerta; ya no es hembra.

Invocación: aire que meces campo de amapolas trae a la hembra
agazapada; anda, correveidile.

Um dia feliz em um poema naif junto a uma porta envidraçada

Charamelas, um piano-forte em um campo de samambaias.

Sou um recém-chegado, bem de saúde, sentado na cadeira de
alcânfora na postura do xogum.

O leão imperial olha no alto a torre de um azulejo a outro
no solo vermelho lajotas brancas leão e torre
azuis, da cozinha: o grande azulejo
incrustado na parede da cozinha olha
no alto desde um leopardo verde-oliva
gargantilha sépia o espetáculo (salpicaduras)
da luz do sol, no solo.

Agora o ar tem ar de recém-chegado de haver sido ameaçado
por cítaras entre lauréis de Índias.

A pêra de água que acabo de morder tinha o corpanzil de buda,
litros e decilitros, ar e água (dois decentes
animais) compensam todo gasto do corpo.

E a pura verdade é que a mulher do bosque tocando o harmônio está
morta; já não é fêmea.

Invocação: o ar que acalenta o campo de papoulas traz a fêmea
acaçapada; vai, mexeriqueira.

Tradução: Claudio Daniel e Luiz Roberto Guedes

Los rasgos y la sombra

LOS RASGOS Y LA SOMBRA de la mujer milenararia de
Cheng Ho acusan tanto la reserva como el
desaliento mismo de la paciencia.
Todas las tardes regresa de la inspección y al llegar al
puente de bambú que la separa del caserío donde
rige en nombre de su marido el almirante Ho
la vieja princesa Ming no se atrevería a apoyar la
imaginación hace años exenta de palabras.
Incluso en 1307 amó al primer arzobispo Juan de
Monte Corvino huraño y animoso bajo la posición
del sauce y las estrellas cuando los tibetanos sin
límites al cielo se amurallaban al pie de las estatuas
de la soberbia asiática.
Incluso su marido de saberlo callaría: mutuo es el
respeto cual acequias paralelas
que vivifican por una parte frutas del mes de agosto
y al otro lado de aquel camino sin orlas ni despido
un horizonte al mar
para Cheng Ho recaudar las tributaciones que no son
pañuelos.
Fueron demasiados años para ella cuesta arriba,
doctrinaria.
Demasiados años la piedad y la obediencia para
Cheng Ho, el almirante eunuco, conquistador del
Océano Índico, de Ceilán y Sumatra.

Os traços e a sombra

OS TRAÇOS E A SOMBRA da mulher milenar de
Cheng Ho acusam tanto a reserva como o
desalento mesmo da paciência.
Todas as tardes regressa da inspeção e ao chegar à
ponte de bambu que a separa do casario onde
rege em nome de seu marido o almirante Ho
a velha princesa Ming não se atreveria a apoiar a
imaginação há anos isenta de palavras.
Inclusive em 1307 amou ao primeiro arcebispo Juan de
Monte Corvino esquivo e valoroso sob a posição
do salgueiro e as estrelas quando os tibetanos sem
limites ao céu se amuralhavam ao pé das estátuas
da soberba asiática.
Inclusive seu marido sabendo calaria: mútuo é o
respeito qual acéquias paralelas
que vivificam por uma parte frutas do mês de agosto
e ao outro lado daquele caminho sem orlas nem despido
um horizonte ao mar
para Cheng Ho arrecadar os tributos que não são
lencinhos.
Foram excessivos anos para ela costa acima,
doutrinária.
Excessivos anos a piedade e a obediência para
Cheng Ho, o almirante eunuco, conquistador do
Oceano Índico, do Ceilão e de Sumatra.

En su pequeña desvergüenza

EN SU PEQUEÑA DESVERGUENZA borda cuatro letras
azules y rememora.
La penumbra de la habitación se presta al menudo
apogeo de los ruiseñores capaces de dislocar la
mañana.
Sobre el mantel el alba confunde la llama del
quinqué,
los gorriones dejan sobre la nieve la insistente
repetición de un ideograma.
Y el alba la seduce a despertar orientando el fragor
de una tetera,
las quietas porcelanas de un agua de jazmín,
la intensa caligrafía rumorosa de unos pasos.
Cuando entre su madre apoyada en un bambú
los sampanes habrán navegado hacia las
desembocaduras de una sombra.
Guiada por el río pasará una doble bandada de
azulejos girando
cuando entre su madre a regañarla en el insomnio.
Sobre la chimenea los objetos simularán una última
vivacidad indeterminada
cuando la muchacha busca su dedal revolviendo entre
los hilos de su costurero.

Em sua pequena sem-vergonhice

EM SUA PEQUENA SEM-VERGONHICE borda quatro letras
azuis e relembra.
A penumbra da habitação se presta ao mínimo
apogeu dos rouxinóis capazes de deslocar a
manhã.
Sobre a toalha a alba confunde a chama da
lâmpada,
os pardais deixam sobre a neve a insistente
repetição de um ideograma.
E a alba a seduz ao despertar orientando o fragor
de uma chaleira,
as quietas porcelanas de uma água de jasmim,
a intensa caligrafia rumorosa de alguns passos.
Quando sua mãe entrar apoiada em um bambu
as sampanas terão navegado até as
desembocaduras de uma sombra.
Guiado pelo rio passará um duplo bando de
azulões girando
quando sua mãe entrar a repreendê-la na insônia.
Sobre a chaminé os objetos simularão uma última
vivacidade indeterminada
enquanto a mocinha procura seu dedal revolvendo entre
os fios de sua costura.

La muerte se quita la careta, la cara,
el cráneo, la nada, y aparece el Buen Dios

Le entrego
la moneda
de cobre
que traigo
debajo de
la lengua.
El Buen
Dios se
echa a
reír y
me quita la
hojarasca
que tengo
en la cabeza,
unas lianas
en la mirada,
un resto
de barro
en la frente,
el esternón,
y de las
tetillas a
los labios.

A morte retira a máscara, a cara,
o crânio, o nada, e surge o Bom Deus

Entrego-lhe
a moeda
de cobre
que trago
debaixo da
língua.
O Bom
Deus
põe-se
a rir e
me tira
a folharada
que tenho
na cabeça,
umas lianas
no olhar,
um resto
de barro
na fronte,
o esterno,
e dos
mamilos
aos lábios.

Tradução: Luiz Roberto Guedes
e Claudio Daniel

De las semejanzas

Arquea las piernas, se fija: la pupila en el alto
azor a la garza.

El disparo de la saeta un largo punto suspensivo,
su estipulación: se clavará
en la carne.

Una misma saeta en la pupila de la garza en las
carnes sin recinto del azor.

Halcón, llamado el Arquero (¿o garza?): puro animal
la saeta la garra del azor llamado
Arquero.

Hizo diana: la incontenible velocidad del aire dispone
frente al sol a la garza el azor
(mediodía) la saeta: hilvanados,
el Arquero golpea tres veces el
suelo (figura) noche amarilla en
un cielo vacío.

Avanza: el movimiento contradice la luz de aquel disparo
en las aves su bastón contradice el
movimiento de la luz al clavar su
bastón sobre la tierra hizo su sombra
la contradicción de un árbol.

Das semelhanças

Arqueja as pernas, fixa-se: a pupila no alto
açor à garça.

O disparo da flecha um longo ponto suspensivo,
sua estipulação: cravar-se-á
na carne.

Uma mesma flecha na pupila da garça nas
carnes sem recinto do açor.

Falcão, chamado o Arqueiro (ou garça?): puro animal
a flecha a garra do açor chamado
Arqueiro.

Diana o fez: a incontida velocidade do ar dispõe
frente ao sol à garça o açor
(meio-dia) a flecha: alinhavados,
o Arqueiro golpeia três vezes o
solo (figura) noite amarela em
um céu vazio.

Avança: o movimento contradiz a luz daquele disparo
nas aves seu bastão contradiz o
movimento da luz ao cravar seu
bastão sobre a terra fez sua sombra
a contradição de uma árvore.

Claudio Daniel

É poeta e tradutor.

Rascunho