O poeta sai de cena
O poeta sai de cena,
deixa versos
e o cadáver.
(Como fugir
ao culto dos mortos?)
As palavras são difíceis
mas a carne cede fácil.
Que ternura! Que metáforas!
É morto fresco.
Mas se o sabor sabe a bolor,
ou já mesmo a podridão,
é que estes tempos são tempos
de rápida corrupção.
Pois fiquem à vontade,
sirvam-se.
Experimentem seu foie gras,
quitute cevado há anos
com tintos de fina cepa.
(Todo leitor
tem um quê de necrófilo.)
Por gentileza, sirvam-se.
Não façam cerimônia.
Vida longa à poesia!
Et bon appétit!
…..
Noiva das ondas
Quando meu corpo veio dar à praia,
o sol rasgava os flancos da manhã.
Sargaços se agarravam à minha saia,
conchas e peixes às meias de lã.
Três dias eu rolei por sobre a areia,
noiva das ondas, em doido vaivém.
Ora a vazante, agora a maré-cheia,
três dias e três noites sem ninguém.
Os olhos debicados pelas aves,
a carne corroída pelo sal,
os ossos encharcados pelas chuvas:
sofri os transes das horas extremas.
Por fim, apenas sombra em meio às pedras,
desenganei-me da terra e do céu.
…..
Ferido de amor e morte
Ferido de amor e morte,
eu me arrasto
pela cidade.
A noite é fria! A sede é tanta!
Os bares estão todos fechados.
Beber não alivia.
Um cão remexe o lixo
num canto da calçada.
Ele rosna quando me achego:
quer um naco
de minha perna, lasca
de minhas costas,
meu coração por inteiro.
Há uma lua no céu,
mas ela está murcha.
Não vale a pena ganir.
É uma lua frouxa,
que escorre pelas janelas,
entra pelos olhos,
mancha tudo de luz cinza.
(Pobre lua abandonada,
mal nasceu, já agoniza!)
Ferido de morte e amor,
eu me arrasto pela cidade.
Às noites sucedem os dias
— é o que dizem por aí.
Em breve, um novo sol,
tonto de sono,
virá despencar sobre nós.
…..
Setembro, tem pena de mim!
E setembro já vai pelo meio.
Mas para onde vai setembro?
E por que tanta pressa, setembro?
Pulamos outubro, já somos novembro.
E dezembro, janeiro, fevereiro…
Mal começam, já vão derradeiros!
São as águas de março
fechando o verão.
Bate muito depressa
este meu coração.
E abril, alguém viu?
Pois é maio e desmaio de novo.
Junho é julho, e que baita desgosto:
acabou de acabar este agosto!
E te encontro de novo, setembro.
E já vai outra vez pelo meio.
Mas por que tanta pressa, setembro?
— Setembro, tem pena de mim!
…..
Escrevo para os mortos
Escrevo para os mortos.
É com eles que converso quando escrevo.
Esta áspera ruminação,
meu desejo de dizer apenas pedras.
(Apenas perdas.)
Pedras tumulares.
Silêncio vertical,
incisivo,
que se entranha.
Silêncio de águas penetrantes,
pela terra.
Que encharquem a carne,
dissolvam os ossos
e lavem a memória.
Escrevo para os mortos.
É a eles que dedico meu ofício.