Cicuta

Conto de Ana Santos
Ilustração: Felipe Rodrigues
01/06/2012

O morto jazia mudo à beira do riacho e era como se ouvisse tudo o que se dizia — sua expressão era a de um grande sábio, um alienista atento a sondar as loucuras da manhã.

dona de casa (consternada): o pobre deve ter passado mal e falecido aí, sozinho, sem a ajuda de ninguém.

morto (sabe-se lá de onde): na verdade, amável senhora, a morte veio suave, dir-se-ia mesmo tépida, no exato instante em que a chamei (ou talvez uns poucos minutos depois). Imagine que…

padre (contido, embora indignado): mas que passou mal, que nada! Pois não vês, filha, o vidro que se encontra ao lado dele? É o vidro do pecado!

morto (divertido): na verdade, ilustre sacerdote, clérigo, enviado, isso nada mais é do que um vidro de cicuta. Sonhava uma morte filosófica e bem se sabe que meu tão prezado Sócrates…

dono da farmácia (secando o suor do pescoço com um lenço de algodão): ao que tudo indica, o homem se envenenou. Esse odor que o vidro exala me parece característico do veneno extraído da Conium maculatum, vulgo cicuta, planta da família das umbelíferas.

morto (contrariado): na verdade, laborioso farmacêutico, não sei por que motivo complicas tanto uma coisinha tão simples (creio que assim o fazem todos os homens durante suas vidas). A cicuta é um inocente sonífero, uma porta sempre aberta para o sonho e…

padre (indignado, embora contido): essa alma triste há de queimar no fogo do inferno por toda a eternidade… rezo para que Deus lhe tenha misericórdia.

morto (desdenhoso): na verdade, ilustre sacerdote, clérigo, enviado, a temperatura é amena por aqui, mas podes rezar, sim, que rezando não dizes bobagens.

dona de casa (ainda consternada e fazendo o sinal da cruz): ele devia ser muito infeliz, coitado, mas, por Deus, nada é motivo para dar fim à própria vida (que é uma bênção).

morto (persuasivo): na verdade, amável senhora, tudo é motivo para dar fim à própria vida. O brinco na tua orelha, os chinelos nos teus pés. A vida é a vida porque há a morte, a morte adocicada e tenra como um morango, vês?, adocicada e tenra…

dono da farmácia (era o mais calado dos quatro): em verdade vos digo que chegará o dia em que a ciência possibilitará a vida eterna.

morto (gargalhando): na verdade, laborioso farmacêutico, não há nada mais indesejável do que a vida eterna! Os dias da existência são histórias repetidas em que não há sequer heróis. Queres saber de minha morte? Pois foi homérica, afirmo-te, morri dizendo um soneto à lua (de Camões), “tanto de meu estado me acho incerto”…

dona de casa (resignada): ao menos não se cortou ou se furou de bala, essas são sempre as piores mortes.

morto (pensativo): na verdade, amável senhora, não posso deixar de crer que tens certa razão. Que magnífico defunto sou eu, limpo como um recém-nascido após o primeiro banho! No entanto, as piores mortes não são a da faca e a do tiro, mas as que tardam em chegar.

dono da farmácia (balançando a cabeça): não tem documentos, nem nada. Vai ser enterrado como indigente.

morto (muito seguro): na verdade, laborioso farmacêutico, mortos não precisam de documentos.

dona de casa (dando de ombros): é! Para morrer, basta estar vivo.

morto (com um sorrisinho nos lábios): na verdade, amável senhora, concordo plenamente com tal afirmação.

padre (compenetrado): o Senhor é o meu pastor: nada me faltará, etc.

morto (impaciente): na verdade, agradar-me-ia imensamente que deixassem de conversa e fossem brincar de roda, entoando, em minha homenagem, um alegre réquiem.

O morto jazia mudo à beira do riacho e era como se ouvisse tudo o que se dizia — sua expressão era a de um grande sábio, um alienista atento a sondar as loucuras da manhã.

Ana Santos

Nasceu em 1984, em Porto Alegre (RS). Publicou o livro de contos O que faltava ao peixe (Libretos), em 2011. Estreou na poesia em 2017 com Móbile (Patuá), finalista do Prêmio Açorianos de Literatura 2018. Com Fabulário (2019), venceu o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, na categoria Poesia.

Rascunho