Chapéu-de-couro

Conto de Nilson Monteiro
Ilustração: Ricardo Humberto
01/06/2004

Nem Cristo. A certeza vinha carregada de autoridade, peito estufado. Ninguém ameaçaria o chapéu-de-couro nascido em chão descalço e curtido, ao crescer, em meio à calçada de cimento, raízes como nervos expostos trincando o mosaico. As folhas, cuidadosamente varridas a cada início de dia, largas. Largos e demorados os dias. A sombra, quase agarrada pelos cabelos, refresco do céu de brasa refletido no chão trincado.

Ele passava ali, sentado em cadeira de palha, seus dias quase preguiçosos, com sua boca de dentes podres a falar mal da vida de todo cristão que passasse por sua rua, em frente ao seu chapéu-de-couro. Ou de ascendentes e descendentes de alguém que desfilasse na rua. Tricotava um por um com a mesma naturalidade de quem pede um cafezinho. Ou de quem come, com 80 e tantos anos, lascas fartas de carne de porco, gordura escorrendo pelos cantos da boca. Ou de quem estúpido no seu futricar como quem xinga reis, damas, valetes e coringas de um baralho bicudo, arredio.

A vida fora dura como pedras do chão bruto, depois arado, revirado, estercado e preparado para as sementes. Fora indiferente como o pasto que espera o ruminar dos bois e a merda dos cavalos. Não tivera tempo ou espaço para brincadeiras. A única que se permitiu foram os galos esborrifando sangue, esporas tingidas de raiva, a brigar, com os olhos dele espetados na rinha no meio do quintal. Enxada, facão, pelego, arreio, chicote, botinas e chapéu foram seus instrumentos de costume, curtindo a pele, as veias, os dias, as mãos duras de calos. Trabalho e trabalho. Missas aos domingos, terço rezado com a brutalidade dos peões, crença dos pais vindos de terras além-mar. Sempre reservara, porém, um pedaço do coração para as árvores, amigas, com frutas ou sombra, perdidas aqui e ali no meio dos bois ou arranjadas ao lado da casa para segurar o vento. Sempre gostara de afagar seus braços, seu caule, seu corpo, suas folhas, seus galhos, a vida feminina de cada uma delas.

Pra matar, era impiedoso. Nem mesmo os olhos moles de uma vaca, o balir de uma ovelha, os guinchos de um porco, as convulsões de uma galinha, o berreiro de um cabrito, nada comovia suas mãos profissionais, neutras na morte. Sentia prazer em sua profissão, tocando berrante, guiando a boiada, os porcos, outros animais, matando, pelando, limpando, retalhando, desossando, pendurando em ganchos do açougue. Seus olhos eram duras gelatinas, sem alma para a morte dos animais. Matava e pronto.

Pra plantar, era carinhoso. Tratava a terra com respeito. Destruía seus caroços de pedra. Alisava-a. Como minhoca, vazava sua carne, achava os veios para estercar e enfiar a semente, uma vida em cada cova. O cheiro da terra molhada pelas chuvas o comovia, levava-o a outros campos, aqueles desenhados quando criança ou pela nostalgia dolorida ou pelos sonhos. As cavas em meio ao pasto viravam mapas desconhecidos. A paciência de tecer estórias não vividas até assustava os irmãos mais novos, aquela fieira desconfiada de sua conversa mole e lúdica.

Mesmo atravessado de anos, dono de uma penca de filhos e de um quintal cheio de mangueiras, laranjeiras, abacateiros, bananeiras e plantas miúdas, era forte. Capaz de jogar um quarto de um boi nas costas, o sangue escorrendo pelo peito cabeludo, os dedos enfiados nos talhos da carne. Ou de matar animais com a mesma indiferença dos tempos de rapaz e de sítio.

Ao adotar e defender o chapéu-de-couro, em frente à varanda da casa, pouco lhe restava dos tempos. Dizia, a todos os ventos, que ninguém, nem o prefeito, nem o padre, nem a mulher, nem os filhos, nem Cristo seria corajoso o bastante para cortar um só galho da árvore. Passava os dias rangendo a cadeira de palha, falando mal dos outros, remoendo estórias. Enquanto viveu, ninguém tocou no chapéu-de-couro.

Nilson Monteiro

Nasceu em Presidente Bernardes (SP). É jornalista em Curitiba. Autor de Curitiba vista por um pé vermelho, Simples e Pequena casa de jornal, entre outros.

Rascunho