Cavalos no escuro

Conto de Rafael Gallo
Ilustração: Mello
01/09/2024

Os cavalos se aquietam no estábulo, a fazenda restituída ao silêncio noturno. Joana deve estar prestes a voltar, então. A porta do casebre se move em um gemido tenso de fragi­lidade. Através da abertura, a luz da lamparina na mão da mulher derrama no chão as formas trêmulas de seu corpo. Os passos que atravessam sala e quarto são captados pela vigília do marido; ele a espera deitado no breu, olhos abertos de frente para a parede. Quando a esposa se senta na cama, o homem se volta e estende a mão ao ombro dela, que se crispa e evita o toque. Toda a pele ao modo de ferida aberta. Pedro não pode mais tolerar tanta recusa, que extrapola a negação por capricho de decência feminina. A esposa ainda guarda ressentimento dele por causa da discussão de tantos dias antes? A dúvida maior, como tudo que há debaixo do sol, projeta sombras para além de seus próprios limites. Quando a mulher não se dispõe ao marido por tanto tempo, alguma desordem há. E se há desordem, precisa ser corrigida. Ele recolhe os dedos, as palavras mal formadas no pensamento, e abre espaço a Joana. Um único movimento do braço dela e o vestido despenca. As costas nuas, curvas ígneas em proxi­midade ao lume, traçam um ponto de interrogação por entre a penumbra. A mulher põe a camisola e, ao deitar-se rente ao marido, apaga a chama da lamparina, afundando o casal de vez na escuridão. Muitos cheiros sobem do corpo dela: o do estábulo, do casarão, de quem lhe cruzou o caminho. Ou talvez estejam só na cabeça dele tais vestígios, das narinas para dentro os odores. Em especial, os que trazem consigo os cavalos, como pequenos demônios infiltrados. Eles voltarão infernais nos sonhos de Pedro, sabe disso antes mesmo de adormecer. Atravessariam também o sono de Joana? Ela não emite qualquer sinal de perturbação ao longo da noite.

Ele dá os primeiros passos dentro do estábulo. Geometria familiar dos espaços — baias divididas para os animais, vigas de madeira cruzadas entre as telhas, piso firme de cimento sob os pés —, porém, conforme avança, as passagens se em­baralham em labirintos movediços. Nenhuma saída possível: em todas as direções que busca, dá de frente com uma parede. Começa a tremer assustado, ele também bicho a farejar perigo nas trevas: a vasta sombra do mal. Está perto. De repente, as bestas surgem de todos os lados, corpos condensados da treva. As patas batem ferraduras contra o chão, relinchos triscam o ar. Pedro vê, de novo nessa madrugada, os cavalos no es­curo passarem por ele, soltos em galopes violentos. Rumam caóticos para o fundo do estábulo, de paredes agora rentes, claustrofóbicas. Ele segue os animais; no centro do círculo onde se juntam, desvela-se pouco a pouco a imagem recor­rente: os cavalos atacam alguém, montam o corpo de uma mulher, fornicam Joana. Pedro acorda em choque, o grito sugado garganta adentro, sem fôlego. Ao redor, a quietude de sempre. O sono sem embates da mulher.

Insone a partir dali, o caseiro só espera o canto do galo conceder permissão para se levantar. Põe à mesa o pão e o leite a serem divididos com a esposa, no cocho o milho das galinhas e no chiqueiro a lavagem dos porcos. O sol começa a despontar. Joana também se levanta. Pedro liga o rádio de pilha, ouve notícias de um país que soa distante daqui, onde vive. Nas capitais, militares no governo têm de combater agentes subversivos, proteger da desordem o povo. Ele tenta compreender tamanho caos, discernir onde estão os erros, mas o caos não permite entendimento. Ainda é cedo para falar com seu Fortunato, então entrega um pouco mais seus ouvidos à programação. Aumenta o volume do rádio.

Pela janela do casebre, vê Joana abrir as portas do estábulo e entrar, desgostoso com a presença dela ali. Pouco depois, a mulher sai; os animais lhe acompanham os passos, o cami­nhar lento dela na bruma fria. Pedro se lembra de histórias ouvidas desde criança na roça: bruxas capazes de enfeitiçar os bichos, levá-los à loucura ou à obediência total. Joana parece conseguir ambas. Ela segue para a casa do patrão, os cavalos deixados para trás. À luz do dia, aparentam serenidade. Pedro segue o mesmo rumo mais tarde, no rastro das pegadas já desfeitas de feitiço da esposa. Tudo dá mostras de calmaria também na residência de seu Fortunato.

O fazendeiro demora-se no andar superior. Pedro aguarda em pé, à risca da soleira. Na parede da sala, o crucifixo de­manda réplica nos gestos do braço. E améns. Depois de longa espera, ouvem-se os passos das botinas firmados no casarão. Antes de vir à sala, o patrão se dirige à copa para tomar seu café da manhã. Pedro escuta a voz dele de longe, a risada pas­tosa após o gracejo de malícia com uma das criadas. Satisfeito, afinal, o senhor vem ao encontro do caseiro. Aproxima-se do aparador na sala e pergunta, de costas, se está tudo em ordem; mãos pousadas sobre a madeira de lei. Pedro responde que sim, chapéu à frente do peito. Seu Fortunato abre a pequena urna de onde recolhe a porção de grãos escuros. Dá as instru­ções do dia ao empregado, no cachimbo soca o fumo. Liga o rádio, bafora fumaça e reprovações frente às notícias de ata­ques dos subversivos. Pedro aprende as palavras de rechaço, aprende o receio oculto da ameaça, enquanto seu senhor se recosta na poltrona de couro. Joana surge à porta que divisa a cozinha, estanca o passo por um instante. Baixa o rosto, desvia dos homens o corpo e o olhar, para rumar aos fundos do casarão. Contorna o assento de seu Fortunato, a meio do trajeto. Sempre que a via, ele costumava lhe passar o braço pelas costas e dizer: “Essa é como uma filha para mim”. As filhas dele, verdadeiras, casaram-se bem moças e foram morar cada uma em um canto distante. Por algum motivo, o hábito de se referir a Joana dessa forma se perdeu, especialmente depois da convocação dela ao serviço interno na residência. Foi incumbida de ajudar nos cuidados com dona Teodora, esposa de seu Fortunato, cuja doença se agravara e a deixara entrevada na cama. Dessa vez, ao ver Joana passar, o velho parece segui-la com a mirada por demasiado tempo, mais do que o determinado pela boa educação; Pedro mede a largura da dúvida. E sobre ele é lançado, na volta, aquele olhar, como se o capturasse em uma laçada invisível. “Você parece cansa­do. Alguma coisa tem tirado seu sono, homem?”, o dono dos cavalos pergunta. “Não, senhor”, o serviçal responde, antes de pedir licença e se retirar para o trabalho.

Na lavoura, ele olha para a terra, é esse o seu lugar. Deve obedecer à ordem das coisas: aos mandos de Deus e do patrão. Mas e se eles se esbarram? Não tinha visto nada com os pró­prios olhos, porém, na imaginação aquilo acontece. Depois desacontece, por força de convicção. E reacontece. O sim e o não, engalfinhados em lutas intermináveis no pensamento, duas feras equivalentes em fúria. Não aguenta mais tanta desconfiança na penumbra da mente; pesadelos que nunca encontram a saída para o despertar, junto ao resto do corpo. Queria saber disparar perguntas como as de seu senhor, ter mira tão precisa para o abate das respostas: “Alguma coisa tem tirado seu sono?”. Pronto, eliminada qualquer manifes­tação além da pura negativa. “Não, senhor.” Se tivesse sobre si mesmo esse poder de calar, talvez conseguisse ter paz.

Faltam-lhe forças para penetrar a terra; ela, que sempre o recebeu com a gentileza da submissão. Pedro chegou ao limite de suportar aquilo que ignora se acontece. Tantas noites de insônia e pesadelos o quebrantaram. A enxada impotente tomba ao solo, chão sem mais domínio. Onde seus passos vão se firmar? O mundo em desbarranco. Precisa tirar a prova do que de fato se passa. Precisa saber. Hoje há de ver também com os olhos, há de ver com os olhos que Deus lhe deu.

Pedro nasceu nessa fazenda, único filho dos caseiros an­teriores. A mãe morreu de parto. Ele aceitou desde sempre o destino que lhe cabia, transmitido pelo pai feito ingrediente do sangue: o labor na terra áspera, o sol incrustado na pele, o peso das cargas, as necessidades dos bichos e a servidão à família de seu Fortunato. Lidar com isso seria sua função, a função que ele seria. O mesmo passou a valer para Joana quando se casaram, havia quase um ano. Se moravam na propriedade, eram parte da propriedade.

Antes da chegada da mulher, foram muitos anos de paz, com os bichos e as pessoas dentro dos devidos limites. No casebre, apenas os dois homens, até a partida do pai. Desde sempre, todas as cercas a guardarem a ordem. Nem os cava­los nem os sonhos eram motivos de perturbação; à noite, o silêncio se estabelecia, conforme se apagavam as luzes. Os animais seguiam as medidas das horas e dos costumes. Do casebre ao casarão, a distância se constituía por medida mais larga do que a metragem que os separa. Mesmo com a chegada de Joana, não houve grandes abalos de início; o desassossego só começou quando ela, passado algum tempo, recebeu a in­cumbência de ir ao casarão, auxiliar nos cuidados com dona Teodora. Ficava lá até depois de escurecer. Tirada da lavoura e dos afazeres domésticos no casebre, onde se guardava sob os olhos zelosos do marido. Começava a se tornar outro o mundo, a fazenda.

No começo da nova rotina, ela reclamou ao marido quanto aos modos do patrão. Os gracejos; as mãos a se colocarem no corpo dela, excessivas. Pedro, dominado por outras mãos do chefe — imateriais e, por isso mesmo, mais poderosas —, pas­sou como instrução tolerar as desmesuras do velho, à mesma maneira que se aceita todo o resto: o labor na terra áspera, o sol incrustado na pele, o peso das cargas, as necessidades dos bichos. Desígnios que Deus dá. Seguiram-se poucos dias, então, com Joana calada. Até que ela retomou as queixas, ainda mais graves. Acusava gestos cujos nomes se esquivava de pronunciar. O marido não ousou fazer pergunta, já havia sido testemunha dos atos de malícia de seu Fortunato com as criadas. Era desagradável, mas Pedro, em seu entendi­mento, conseguiu amenizar os toques que não eram nele. Passada uma semana, a mulher insistiu, disse que o patrão não prestava. “Pois você pare de ofender seu Fortunato. Não quero saber desse desrespeito aqui”, o serviçal impôs ordem. Joana bufou, saiu de perto. Na manhã seguinte, retomou o assunto, exigiu que o marido fosse retrucar com ele. “Quem é que aceita uma coisa dessas, homem? Você precisa é defender nossa honra. Me defender.” E que abuso era aquele? O que ela esperava? “Nossa honra é fazer jus a nosso lugar aqui.” Joana virou o rosto para a janela, para fora do casebre; suspirou com aspereza. “Você está me deixando é abandonada, para o que der e vier.” Pedro se ergueu da cadeira onde estava, engoliu em seco. Demorou-se antes de falar: “Ninguém vai abandonar ninguém. Nem eu, como seu marido, que sou; nem você, como criada, que é. E chega dessa história. Não quero mais nenhuma palavra sobre isso. A gente deve muita coisa ao seu Fortunato, a primeira delas é obediência e respeito”. Joana balançou a cabeça em negativas; depois disso, foram somente nãos ao marido.

Ao fim daquele dia mesmo, ela voltou bem mais tarde do serviço. Pela primeira vez, os cavalos urraram à noite. Pedro acordou com o barulho; só então percebeu que havia caído no sono, à espera da esposa, mas adestrado pelas horas. No sobressalto, buscou a espingarda pendurada atrás da porta, saltou para dentro das botinas e correu ao estábulo. Os gritos dos cavalos irrompiam do escuro, flamejavam. Ele pensou nos animais do patrão, mas também na mulher, na ausência dela. Onde estaria? Uma luz se moveu furtiva no abrigo dos bichos, ricocheteou vãos afora. O caseiro seguiu em passos mais cautelosos. Talvez fossem ladrões, quantos deles? Ou os subversivos de quem a rádio tanto falava; nunca tinha visto nenhum. Comunistas prontos a tirarem dos outros tudo que lhes pertencia, até os cavalos de seu dono. Tremeu atemo­rizado, o sinal da cruz na mão desprendida da espingarda. Ao se aproximar, viu as portas de madeira abertas. A luz em movimento se escondeu atrás de uma das paredes. Pedro engatilhou a arma, apontou e se jogou ao bote. Deparou-se com seu Fortunato do outro lado da murada. E Joana.

O patrão cuidou de esclarecer: “Está tudo bem, Pedro. Volte para casa. Joana já vai”. A mulher tinha o corpo retraído, braços cruzados a se esfregarem para se proteger do frio. Mas Pedro via que não estava no ar o frio; ao menos, ele estava bastante acalorado. A cabeça dela permanecia baixa, rosto desviado dos homens. O caseiro lembrou-se da discussão pela manhã, quando exigiu obediência e respeito ao fazendeiro. Repetiu a si próprio a mesma instrução e se pôs a cumpri-la. “Sim, senhor”, voltou ao casebre.

Depois de repor a espingarda no lugar, andou aos círculos dentro da sala. Por que estavam os dois ali, no estábulo? Uma sombra de suspeição passou ligeira, pássaro de voo torto. E os cavalos naquela revolta, aquele estardalhaço; nunca havia visto nada parecido. Será que a mulher tomou a iniciativa de retrucar com seu Fortunato, como esperava do marido? Deus que perdoe, misericórdia. Odiou Joana, num rompante. Por entre a escuridão completa do mal, distinguia a sombra com os contornos da mulher. Quando ela chegou, disse logo: “Seu Fortunato mandou falar que é para você esperar até amanhã. Ele é que vai explicar tudo”. Pedro não sabia como lidar com a esposa nesse momento, quis fazer perguntas, quis gritar, mas acolheu a espera até o dia seguinte. Os dois se calaram, porque, no fundo, o mandamento do patrão era esse; cada um no silêncio que lhe cabia. Deitaram-se e era como se o espírito de seu Fortunato, por alguma fresta, tivesse entrado também no quarto. Alma penada de corpo ainda vivo. Desde essa pri­meira noite na qual os cavalos relincharam no estábulo, tam­bém passaram a urrar nos pesadelos do caseiro. A princípio, as imagens eram fragmentadas, ele ainda não chegava a ver a formação do círculo infernal, nem os cavalos sobre Joana ao fim. Apenas sentia a atmosfera maléfica cercá-lo, indefinida.

A mulher não se levantou da cama quando o dia nasceu. Tinha olheiras fundas como hematomas, nascidos sem qual­quer surra. O marido concluiu que estava doente, acometida daquele frio estranho da véspera, e a deixou. Cuidou da alimentação dos bichos, soltou os cavalos e, já que estava ali, vasculhou o estábulo, sem encontrar nada de diferente à luz do sol. Seguiu para a casa de seu Fortunato. Foi recebido depois do café da manhã, a explicação preparada: “Pedro, os cavalos estão começando um tratamento novo. É para ficarem mais vigorosos” — a palavra dita com gravidade, vigorosa em si. “Joana vai me ajudar a aplicar o remédio. Ela tem prática, por preparar os unguentos de minha esposa. Depois de arrumar Teodora para dormir, ela vai comigo no estábulo. É de noite que tem que ser, as aplicações.” O caseiro balançava a cabeça, em aceitação. “E, olhe, é importante que ninguém se meta por lá nessa hora. O doutor que me indicou o tratamento, ele disse que os cavalos iam ficar agitados. Você mesmo escutou, não foi? Pois então. Mexe com o coração deles, com o sangue. Por isso, tem que ter o mínimo de movimento perto, o mínimo de gente. Se aparece mais alguém ali, no susto, é capaz de o bicho ter uma síncope. Pedro, se um cavalo meu morre por sua cau­sa, eu nem sei o que faço com você.” O caseiro se balançou em negativas, jamais colocaria o patrimônio do patrão em risco. Acatado estava, mais do que a ordem implícita, o medo das consequências se não a cumprisse. Os dois homens ficaram em silêncio por um instante, até que o assunto desaparecesse por completo no ar, esfumado pelas baforadas de seu Fortunato no cachimbo. “E Joana?”, o fazendeiro perguntou, em tom de cobrança. “Não estava se sentindo bem. Ficou de cama. O senhor sabe, tem esposa adoentada também”, o subordinado arriscou. “Pois se é justo por ter esposa adoentada que eu preciso dela! Mande vir, e é já!”

Pedro garantiu que Joana fosse. E ela continuou a ir, todos os dias e noites seguintes. Os cavalos a urrarem. O caseiro ou­via, aterrorizado e sem ação, os sons dos corpos a se debaterem, monjolo carnal em repetições febris. Imaginava os cavalos no escuro a trombarem entre si, uma forma desconhecida de angústia. Nunca viu tratamento se dar desse jeito; seus efeitos, no entanto, pareciam dar provas de sucesso: os bichos cada vez mais vigorosos. Dentro dos pesadelos, as patas, os dorsos negros e os dentes aumentavam ainda mais sua potência.

Pouco a pouco, outra regularidade se pôs sobre a fazenda, o mundo. Ordem na qual as noites no estábulo eram interditas a Pedro, mas não à esposa; enquanto a esposa era interdita a ele. E nenhuma reclamação dela, nenhuma palavra a mais, conforme ele mesmo havia ordenado. O que o patrão podia fazer de macheza perdia definição, limites. Pedro tentava calar o pensamento, mas só tinha a voz do próprio pen­samento como recurso para isso. As moendas do destino, antes reguladas com cada engrenagem em seu lugar, com o novo funcionamento iriam pifar. Dava para pressentir, com a mesma clareza que as cigarras cantam quando sabem que o sol virá. Joana, às noites, quase muda de tão calada. E intocável, nunca disponível ao marido; terra seca. Até que ponto ela levaria a represália? Pedro se indignava. O fazendeiro dava os comandos de sempre; nenhum cuidado especial com os cavalos, além de não se aproximar deles na­queles momentos, quando relinchavam. O tratamento deixou de ser mencionado, porém Joana continuava a voltar tarde. Pedro a questionou, certa manhã, após tantos pesadelos: “Essa coisa com os cavalos… Até quando vai?”. A mulher limpou as mãos no avental, cravou as unhas no avental. “Pergunte a seu Fortunato. E me fale a resposta, que eu também que­ria saber.” O caseiro sabia que não era de sua alçada levar questionamentos ao chefe. Então, só rezava em pedidos de iluminação ou socorro, sozinho no casebre. Os Céus, porém, tão silenciosos quanto as paredes que ele encarava à noite. Se ao menos o Senhor se pronunciasse; nem que fosse para, mais uma vez, expulsar seus filhos do paraíso onde moravam, depois do surgimento da mulher e dos desvios causados por ela. Ao pensar em Deus, Pedro considerava que seu Fortunato não poderia estar envolto naquele erro que assombrava suas ideias; só podia ser defeito da própria imaginação, considerar tamanha baixeza da parte do superior.

Quando o fazendeiro anunciou que sairia em viagem por duas semanas, para visitar uma das filhas e fazer negócios, houve um estranho alívio para o casal. Não conversaram sobre o assunto, de forma que ficaram sem saber um do outro qual era exatamente o reconforto. Joana continuou a cumprir as obrigações dela, tanto as diárias com a dona Teodora quanto as noturnas com as idas ao estábulo. Sem a presença do patrão, Pedro teve coragem de sair à porta do casebre e observar o rumo da esposa. A repetição solitária dela fez o temor dele se aquietar, finalmente o silêncio retomado dentro de sua cabeça. Ele se deu conta, nesse momento, de que, há tempos, nem sabia mais se seu Fortunato continuava a acompanhar o tratamento. Respirou o ar sereno da noite. Então, os cavalos, contra toda pacificação, urraram em furor quando Joana entrou no espaço deles. Faltou pouco para Pedro decidir-se ir até lá; o mando do patrão o reteve, mesmo na sua ausência.

Voltou para dentro do casebre, esperou pela mulher. O carra­pato da suspeita voltou a sugar-lhe o sangue; tentava se convencer de que eram só os cavalos que o perturbavam, mas a cólera deles se transmitia ao próprio corpo, por uma espécie vampiresca de empatia. Não podia ser que um tratamento os deixasse, todos, tão inquietos. Tinha alguma coisa além. Mas como podia vislumbrar aquela baixeza do patrão com a esposa? Ainda por cima, quando o patrão nem estava ali e os cavalos continuavam daquele jeito? Era o mesmo jeito, ou os gritos estavam um pouco mais fracos dessa vez, só com a mulher? Já não sabia mais o que presenciava. A mera lembrança do horror parecia ser o que o horrorizava; essa a forma de os pesadelos circularem por trás dos olhos quando estão abertos: as lembranças. Por dentro dessa noite, sem seu Fortunato, infiltrava-se aquela outra, na qual havia encontrado os dois no estábulo. E todas as outras noites, quando foi proibido de ver. Um único momento de oposição não basta para neutralizar a soma das confirmações a si próprio. No vislumbre dos lugares onde ele não podia estar, Joana se apresentava de muitas for­mas. Guardava algo de diabólico debaixo da pele, que então se manifestava. Enquanto a mulher não voltava para casa, os pensamentos do marido se ramificavam em folhagens, e eram também a praga a infestar essas folhagens. Joana se revelou à porta, finalmente; perguntou o que ele tinha, por que estava daquele jeito. “Nada, não”, foi a resposta, antes de irem para a cama. A cama onde a mulher o recusou outra vez. A rejeição era a mesma: triste, ressentida. Não era mesmo o patrão, o motivo, ele não estava ali; isso deveria aliviá-lo de alguma forma, mas Pedro só se desesperava mais. Um último cavalo relinchou, solitário.

Noite após noite, mesmo com Joana sozinha no estábulo, o inconformismo do marido só ganhou tônus. Ela ia aonde o patrão havia mandado, ele impedido de estar lá pelo mesmo mando. Quando seu Fortunato voltou de viagem, Pedro teve outro alívio, como se o esperasse para tapar um buraco. Mas a presença do chefe tinha peso e fazia as bordas desse buraco ruírem, aumentava-o. Pedro, noite a noite, convencia-se pela invocação dos cavalos por ele: precisava espiar o estábulo, com os dois lá. Estariam os dois lá, ou Joana seguia sozinha? Olharia de longe, não afetaria o pandemônio. Conciliaria a possibilidade de sanar a dúvida e a preservação dos animais. Não podia colocá-los em risco, não podia feri-los de forma alguma.

À noite, avançou pelo mato, parou logo que o farfalhar dos passos se ergueu do chão. Seria percebido com tal ruído. Viu o abrigo dos animais completamente fechado; apenas escapavam pelas frestas os berros cavalares, o som das car­nes em choques e os reflexos da lamparina, coração de luz a palpitar no interior. Percebeu que não se lembrava dessa movimentação do brilho antes, quando Joana foi sozinha ali. Tampouco recordava o contrário: se a luz ficava parada. Sempre essas incertezas, não podia suportar mais. Pouco enxergava naquele breu e, quanto menos via, mais lhe vinham imagens. Voltou às pressas para a cama, em precipitação da insônia. Desperto até Joana chegar, ouviu a porta gemer, os passos dela enquanto trazia a lamparina maléfica. Tentou tocá-la, a mulher se crispou. Essa seria a última noite que admitiu tal desordem; tiraria a limpo a verdade. Um homem não pode tolerar tanto. O vestido dela despencou, a chama da lamparina foi apagada. A escuridão e o pesadelo com os cavalos. A manhã seguinte tardou a romper, chegou fria como a maldição de bruxas. Joana no estábulo, Joana com os cavalos no encalço dela, Joana destinada ao casarão. Dia após dia. Não podia mais aguentar.

Hoje há de ver também com os olhos, há de ver com os olhos que Deus lhe deu. A enxada impotente tombada ao solo, que Pedro não ergue. Se algum cavalo for mesmo morrer do coração, que seja; antes o bicho do que eu, que já estou perto disso, ele pensa. Um sacrilégio tal ideia, mas Deus e seu For­tunato o perdoariam, se fosse preciso; confia na misericórdia de ambos. O mundo só não pode continuar assim, tudo fora do lugar: uma esposa que recusa os toques do marido; um homem sem possibilidade de questionar sua mulher; os bichos a armarem escândalos; o dono da propriedade a trazer dúvidas à cabeça de seu serviçal, em vez de certezas.

Quando a escuridão da noite domina a fazenda e o primei­ro relincho dá início ao alvoroço, Pedro sai do casebre. Está vestido, pronto à emboscada. Contém os passos para chegar sem ser notado. Esgueira-se pelo mato, as folhas pisadas a sussurrarem alertas contra o avanço. Ele sussurra: “Shiu”, para que as plantas se calem. Chega ao estábulo, entra pela abertura dos fundos e, em meio à agitação ruidosa dos bichos — cada um preso na própria baia, como haveria de ser —, vai até o ponto de onde emana a luz. Depara-se com a imagem que nos sonhos se transfigurava, mas agora se mostra, despida dos artifícios da negação: seu Fortunato, de calças arriadas e arfando como se a morrer, montado no corpo submetido de Joana. Todos os pesadelos refluem, do estômago para a boca. Sua esposa bem ali; sua esposa domada, fêmea, quadrúpede. Os cavalos gritam relinchos, sombras agigantadas dos sola­vancos do velho. Pedro, no centro do círculo infernal, vê o horror e quer esquecê-lo, cegar para sempre, mas não pode mais. Aquilo já não pode desacontecer. A visão à sua frente é real, portanto, o pesadelo definitivo. Marcado a ferrete em seus olhos e através deles.

Tem vontade de urrar com mais força do que todos os bichos juntos, rasgar a voz até cuspir sangue garganta afora, vomitar o horror. Mas se cala. Deseja estraçalhar com patas de ferro o corpo de seu Fortunato, o corpo de Joana, o próprio corpo. Detém-se, as mãos esfregam-se nos braços cruzados e só. Todos os bichos presos em suas baias. O que fazer agora? Deus naquele silêncio de parede infinita. É essa passividade divina o exemplo a ser seguido? Mas como suportar o coração sangrento de homem, que continua a bater tanto no peito? Tanto, tanto.

Ele atravessa de volta o mato, entra no casebre. Vê a es­pingarda pendurada atrás da porta. Que ordem poderia restabelecer na fazenda, no mundo? Toma a arma nas mãos, o desespero emudecido a faz tremer. Previsões de pólvora e dilaceração atravessam sua mente. Joana, seu Fortunato, a fazenda inteira: o cano da espingarda alterna os alvos, instante a instante. Afinal, ele se vê à iminência de voltá-la contra si mesmo, de se despedaçar. Nem parece necessário um tiro para isso. Seu corpo, porém, continua sólido e inescapável. Agarra a arma com força, é dominado pela ideia do disparo, como se sussurrada pelas folhas ao vento lá fora. Impregnado da escuridão do mal, encosta o cano da espingarda ao quei­xo, sente na pele a ranhura do buraco metálico, caminho da bala. O dedo roça o gancho do gatilho, um anzol para fisgar o homem. Respira fundo. Basta o minúsculo gesto de um dedo.

E não pode.

Afasta de si a arma. Pior do que assumir a vergonha mari­tal, pior do que tudo, seria marcar essa terra com seu sangue. Deixar acusação ou mácula a seu Fortunato, que nunca poderá limpá-las. Cometeria tamanho pecado? Pendura a espingarda de volta, no lugar ao qual pertence. Deus tenha misericórdia. Arranca o lençol da cama, recolhe seus poucos pertences e monta a trouxa a levar consigo. Sai, com o peso acomodado da bagagem de pano no lombo, a luz curta de outra lampa­rina. A estrada de terra estende-se a perder de vista, cercada de arames farpados, para evitar que os animais escapem. Ele não se detém. Pensa que poderia ter soltado todos os cavalos antes de partir; podia tê-los cegado, arrancado os olhos deles para que não vissem mais aquilo. Continua a caminhar, os sons dos cavalos no escuro já perdem força. Talvez o silêncio, agora, seja por Pedro encontrar-se afastado do lugar que era sua casa; talvez seja porque Joana, nesse mesmo instante, está prestes a voltar para lá.

NOTA
Cavalos no escuro dá título à coletânea de contos a ser lançada em setembro pela Record.

Rafael Gallo

Nasceu em São Paulo (SP), em 1981, e atualmente reside em Lisboa (Portugal). É autor dos romances Dor fantasma (Prêmio José Saramago 2022) e Rebentar (Prêmio São Paulo de Literatura 2016); e da coletânea de contos Réveillon e outros dias (Prêmio Sesc de Literatura 2012). Tem textos estão publicados em países como França, Estados Unidos, Cuba, Equador e Moçambique.

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