Casamentos & analistas

Conto de Sonia Coutinho
01/03/2001

Eu conto. Conto, sim. O que se passou na cabeça daquela mulher na tarde de domingo que mudou a vida dela.

Conto que há alguns anos está sozinha, depois de experiências “agridoces”, como ela própria classificaria. Sabem o que fez Laura, no final da tarde que mudou sua vida? Eu conto.

Quando esta história começa, ela está em seu apartamento, em Humaitá, Zona Sul do Rio de Janeiro.

Da pequena varanda da sala, olho perigosamente a rua, 12 andares abaixo. Triste. Tristeza profunda como o silêncio. E o coração dispara, como se fosse acontecer Alguma Coisa Terrível.

Faço um esforço para entender: parece uma daquelas crises de pânico que eu tinha na adolescência, quando andei ruim de cuca.

Estava dividida em duas: uma agia, a outra observava. E havia as fobias — medo de escuridão, lugar apertado, morte. Às vezes, tinha certeza de que morreria dentro de instantes.

Podia ser dentro de um avião, que logo cairia. Ou depois da picada de um inseto, supostamente venenoso. E vinham momentos assim: suor frio, coração disparado. Como me sinto agora.

Mas desvio o olhar da rua e contemplo o céu, onde voa uma lenta gaivota. Sim, estou mais calma, me acalmei.

Não pus o pé fora de casa, este domingo. Deve ser isso. O dia inteiro trancada. Em casa, a depressão só poderia piorar. Se fosse a um shopping, visse um filme…

Quem sabe ainda dá tempo? Estico o pescoço, espio o relógio na parede da sala. Mas já são quatro e meia.

E cinema, domingo, só na primeira sessão, ainda não tão cheia. Vou ter de ficar aqui, dar um jeito.

Dez minutos depois, percebo que o desespero volta. É quando, como um último recurso, lembro o Segundo Analista. Tenho o número do seu celular, ele me deu.

Quanto tempo atrás, mesmo? Um ano, dois anos?

Mas acho que, nas circunstâncias, ele perdoaria uma repentina incursão sua vida, num fim de semana.

Enquanto tento decidir se ligo mesmo para o Segundo Analista, lembro de repente o Primeiro.

Aqueles cartões postais que eu mandava para ele de Paris, no curso de uma viagem com o Segundo Marido.

Você se revê, Laura, sentada à mesa de um café em Saint Germain, escrevendo frases amáveis para o Primeiro Analista num cartão postal com uma reprodução de Odilon Redon.

O Segundo Marido estava à sua frente, mas você não olhava, cansada das grosserias dele.

Naquele momento, você previu que nunca mais viajariam juntos. E que ele não era apenas seu Segundo, mas seu Último Marido.

Uma constatação terrível, para quem, como você, sempre dependeu da idéia de se casar, só se sentia segura com um marido. Naquele café, você teve de admitir aquela era uma das Coisas Para Nunca Mais.

Depois de Paris, Atenas. Os dois no quarto do hotel, você abriu a janela e viu o rosado Partenon. Enquanto ele, de costas, não parava de se queixar. As queixas eram porque você não queria fazer sexo. Quanto mais ele cobrava, mais impossível para você.

Mas, embora eu continue a pensar no Segundo como “meu analista”,  na verdade ele já é um ex. Será que ainda funcionaria?

Saio prudentemente da varanda, vou para o quarto. Deito na cama, barriga para cima, olhos pregados no teto. Posição favorita.

E continuo a pensar. Sempre tão séria que eu era, antigamente. A falar e falar, dissecando tudo, com maridos e analistas.

O princípio básico a que eu atendia: uma Tentativa de Decifração da Vida Através da Lógica das Palavras.

Incrível como as coisas vão ficando distantes em minha vida. Uma surpresa, sempre, a passagem do tempo. Lembrar um ex-analista é como lembrar um ex-marido.

Confiro: dois analistas, dois maridos. Verifico mais: 12 anos de casamento, ídem de análise.

O primeiro casamento foi convencional. Você estava com quase 30 anos, Laura, achou que tinha chegado a hora. Então se casou para descobrir, pelo menos, como era. E não gostou. Ficou sem solução tudo o que você pensou que se resolveria depois.

O passo seguinte, a separação, foi dado em plena década de 70, quando era novidade separar. No fundo, você sentia uma ternura imensa por aquele Primeiro Marido que nunca lhe fizera nada de mal, muito pelo contrário. Mas sua impressão, àquela altura, era de que, se ficasse com ele, morreria sufocada.

Além disso, você estava apaixonada por outro, claro. No fundo, Laura, por mais tolo e cafona que possa parecer agora, sua certeza escondida era de que, estando novamente livre, você poderia se unir afinal com o Homem Certo e ainda seria Feliz.

Puxa, mas estou muito cansada! Minha vida inteira, que exaustão! Como se eu tivesse disputado algum tipo de maratona.

E a vitória é minha, sem dúvida. Posso entrar, quem sabe, para algum livro de recordes. Mas é uma vitória triste. Na verdade, não pretendia disputar corrida nenhuma. Apenas continuar em minha marcha inevitável de pessoa viva, fazendo o que tinha de fazer.

Dou outra olhada no relógio, agora o da mesinha de cabeceira. Cinco en punto de la tarde. Pulo da cama, vou à cozinha preparar o café com leite que tomo todos os dias a essa hora, com uns biscoitinhos, como se fosse um tea inglês.

Alguns minutos depois, tudo pronto, me sento na cadeira de balanço da sala, ponho a xícara e o prato com os biscoitos na mesinha.

Comi vários biscoitinhos, acho que chega. Encerro o ritual do café. Carrego a xícara e o prato vazios para a cozinha. Começo a lavar tudo, inesperadamente diligente.

Claro que eu devia ligar para o Segundo Analista. Mas, em vez disso, telefono para um amigo, Pedro. É um Escritor Que Não Sai de Casa. Passa os dias diante do computador.

Há muito tempo não o vejo, só nos falamos pelo telefone. Ligo para ele e a voz vem sempre, consoladoramente, do outro lado do fio.

Pergunto vagamente como ele está e começo a falar da minha angústia. Digo que pretendo tornar a procurar um analista. E lembro como procurei o Primeiro.

— Eu tinha 37 anos quando me separei do Segundo Marido. E minhas crises de pânico começaram a voltar.

Pedro sabe tudo sobre minha vida. Claro, tivemos um namoro, séculos atrás, e depois ficou essa amizade telefônica. Ele diz:

— Com o fim do segundo casamento, você entendeu que não conseguia manter, por muito tempo, relações sexuais com o mesmo homem. Não foi isso?

Levo um choque, percebendo como sou franca com Pedro.

— É, foi isso — respondo. — É bom você me lembrar. Minha tendência é mascarar essa verdade. O que me leva a uma tristeza profunda com as separações, como se pudessem ser evitadas. Mas nos dois casamentos o final foi o mesmo: incapacidade de continuar fazendo sexo com aquele homem. E a necessidade, não aceita pelos parceiros, de intervalos para divagações e até mesmo paixões, ainda que platônicas, por outros homens. Às quais se seguiriam nostalgias, revisitas, recomeços.

Quando desligo, penso em meu começo de análise.

Você achava tarde demais para começar, mas decidiu tentar. O Primeiro Analista não dizia nada, só você falava sem parar, sentada numa poltrona de couro.

Ele era um analista de Ipanema, tinha analisado dois amigos seus e um deles o indicou.

Ele usava camisas bonitas, estampadas. Até então você não gostava de gente daquele tipo. Pessoal de Ipanema, superficial.

Sua origem é a Zona Norte, embora naquele tempo, Laura, você já morasse em Copacabana.

Mas você acabou olhando com simpatia as camisas do Primeiro Analista. E foi assim que você começou a mudar. Nunca mais seria a mesma, depois daquelas camisas.

Foi o fim de uma seriedade radical e suburbana.

A relação com o Segundo Analista terminou, paradoxalmente, quando você teve uma estafa e ficou pirada. Caiu de cama, não conseguia levantar-se, sua cabeça era um vazio.

Houve uma noite em que você saiu dirigindo sem rumo. As figuras em torno pareciam desfocadas e flutuantes, como se você estivesse em outra dimensão.

Como se todos em torno fossem astronautas dentro de uma nave espacial, sem o peso da gravidade.

Ou como se fossem pessoas debaixo dágua, enquanto você rodava interminavelmente pelo fundo do oceano.

Minha família foi informada. Mamãe ficou hospedada em meu apartamento, a pretexto de cuidar melhor de mim. Meu irmão apareceu algumas vezes.

E os dois entraram em contato com o Primeiro Analista. Foi então que perdi inteiramente o interesse por ele.

Mais tarde, acabei perdoando a traição, aquela conversa na minha ausência com uma família de que eu tanto me queixava, nas sessões. Mas nunca mais voltei ao consultório dele.

Transponho a porta de vidro, estou novamente na frágil varanda. É estreita, mais para sacada, com paredes transparentes de uma espécie de plástico grosso, imitando vidro.

Olho para o chão. Inclino levemente a cabeça para o lado, tonta. Seria rápido, ou não? A pessoa morre logo ou ainda vive alguns minutos? E doerá muito?

Mais uma vez, decido: tenho de ligar para o Segundo Analista.

Junto com muito amor, a relação com o Segundo sempre teve muita briga. O motivo: você achava que ele falava como um careta, embora se apresentasse como neo-hippie.

Você farejou atrás dele um grupo diferente do seu. Em seu redor sempre houve gente barra-pesada, se virando para sobreviver. Desempregados, professores que recebiam por aula.

O Segundo Analista, você sentiu, era bem pago, embora dissesse que cobrava pouco e até, em certos casos, não cobrava. Com isso, a vida dele era obviamente mais leve.

O aspecto hippie era por conta do gosto dele por alimentação natural, das roupas coloridas e descontraídas.

Um dia, você atacou:

— Você é um burguês fantasiado de hippie.

Logo depois, houve uma sessão em que você disse palavrões o tempo inteiro. Um atrás do outro, como uma cantilena.

Eu sei, foi para exorcizar a excessiva simpatia dele, que lhe parecia falsa, apenas profissional.

Mas as brigas pararam de acontecer. Você acabou seduzida, começou a amar o Segundo Analista.

Foi como se tivesse ganho, afinal, seu cachorro. Sim, o cachorro que você tinha desejado a vida inteira, desde a mais remota infância.

O Segundo Analista resgatou em você um lado idiota e feliz, uma infância até então não vivida.

Alguns dias depois, telefono afinal. E o Segundo Analista me chama para participar de um grupo que passará o fim de semana  na pousada que ele tem, num sítio. Irão outros pacientes.

Um reencontro nosso, antes de marcarmos sessões.

Ele explica que o grupo volta domingo à tarde, ele inclusive. Mas, se quiser, posso ficar até segunda feira, haverá transporte.

Sábado, sigo para a Bocaina de Minas com mais umas cinco ou seis pessoas, numa van enorme.

A pousada é numa casa de pedra, no alto de um morro. Lá embaixo, entre colinas, corre um rio.

O grande momento, hoje, foi quando o Segundo Analista se jogou no rio, de jeans e camiseta. E eu entendi o significado da palavra kairós. Atos de celebração da vida. Performances.

Não há programação estabelecida, as pessoas fazem o que preferem. Andar a cavalo, passear pelo sítio, tomar banho de rio.

Na segunda noite, percebo que todos foram embora, até o Segundo Analista. Era o combinado, mas de repente, como quem entra num pesadelo, eu tinha esquecido.

E me vejo de repente sozinha, num ermo. A casa sem nada em torno, no coração das montanhas e do mato.

Mas não, como logo verifico. Além de mim, ficou também um sujeito esquisito, magro, com um rosto comprido, cabelo liso preso num rabo de cavalo. Só falta usar o chapéu de Daniel Boone, mas ele tem um nome grego: Nikos.

Começamos a conversar, ele é gentil. Faz perguntas, quer saber o que se passa comigo, por que estou com esse ar assustado.

Falo sem parar, tento espantar o medo. Nós dois sentados em frente à lareira, enquanto a escuridão cai.

Nikos conhece o pensamento oriental: taoísmo, budismo. Diz que mora  na pousada do Segundo Analista há um ano. Seu objetivo: meditar. É tradutor, explica. Trabalha aqui mesmo.

Deseja alcançar o satori, a iluminação. Acha que já experimentou alguma coisa nesse sentido. Talvez chegasse perto. Mas acredita que pode ir além. Visita periodicamente um mosteiro Zen em Ouro Preto.

Mal ele se cala, volto a falar. Num surto, conto a Nikos um resumo da minha vida inteira, ouvindo o crepitar do fogo na lareira.

Com o anoitecer, os pássaros piam mais alto. Os cães,  já soltos, rondam a casa. Os olhos amarelos de um deles brilham na escuridão.

De repente, sinto que entendo. O quê, mesmo? Ah, tudo o que interessa saber. E paro de falar.

O quê, exatamente, me faz parar? Um insight. Sinto que preciso, ahn, ouvir o silêncio.

Nikos recita:

“Há alguma coisa nebulosa, mas completa,

Nascida antes do Céu e da terra.

Silenciosa, vazia,

Auto-suficiente e imutável,

Revolvendo-se sem cessar, initerruptamente.

Age como mãe do mundo.

Não sei seu nome,

E chamo a essa coisa de Tao.”

Conto, sim, claro que conto. Laura, contra todas as expectativas, quero oferecer a você este happy-end.

Conto que ela esqueceu a atração fatal da rua vista da varanda.

 Na volta da pousada, compro livros sobre o pensamento oriental. Dois meses depois, tento saber de Nikos.

Mas o Segundo Analista me conta que ele voltou para o Rio Grande do Sul, onde nasceu.

Mergulho sozinha nos livros. E assim continuo, por um ano. Então, procuro com quem trocar informações.

Conto sim, claro que conto.

Vou lendo. Não acontece coisa alguma e tudo acontece. Nada mais será igual em minha vida, percebo.

Quem disse que não se muda de vida, depois de certa idade? Muda sim. Estou mudando a minha.

Começo a participar de atividades de grupos de estudos. Ganho acesso a entidades internacionais. Conheço uma porção de gente.

Recebo convites, viajo para Índia.

Conto sim. Conto que agora Laura (professora aposentada?) mora num mosteiro na Índia. Pelo menos, assim me informaram.

Talvez não seja verdade, mas que importa? Talvez eu tenha apenas imaginado. Mas, ainda assim, estou podendo contar.

Sim, o que se passou na cabeça daquela mulher (48 anos?) na tarde de domingo que mudou a vida dela.

Sonia Coutinho

Autora de Os venenos de Lucrécia e O último verão de Copacabana, entre outros.

Rascunho