Casa Cor

Conto inédito de Marta Barcellos
Ilustração: Mello
01/04/2022

Que nome diferente sua filha tem. A corretora, os olhos embutidos entre a testa larga e a máscara enorme, poderia ter escolhido um comentário melhor para quebrar o gelo. Mali ensaia uma gracinha no intuito de ganhar a atenção da visita, o que faz a mãe precisar ainda mais da empregada fora de esquadro no cenário idealizado pelo arquiteto da Casa Cor.

Francimar, renomeada Fran desde que Gabriela se rendeu à diarista, pica os legumes recém-comprados na feira orgânica da Nossa Senhora da Paz. Fran não usa uniforme branco, mas sua pele escura é destacada pela luminária escandinava. Por trás da bancada de madeira maciça da cozinha americana, ela ocupa o lugar onde deveria estar Leandro, testando um novo risoto, se ele tivesse ficado em casa, em vez de correr na praia. Gabriela está exausta.

Mas sabe que continua linda. O cabelo derramado em ondas nunca foi tão brilhante, graças ao estrogênio liberado pela amamentação. A barriga jovem, malhada desde a adolescência, voltou rápido ao lugar, com ajuda do jejum intermitente. Mali é realmente um bebê fascinante, ruivo como a mãe, e durante este um ano e cinco meses Gabriela respondeu com condescendência à pergunta se é menino ou menina, como se aquilo importasse. Não deveria estar tão irritada com a corretora.

Podia ter previsto o papel a ela reservado. Aquilo tudo poderia acontecer dali a três ou quatro anos, pois quatro meses de confinamento correspondem a quatro anos, ela raciocinou. Precisamos vender esse apartamento, Leandro, não aguento mais. O marido em frente ao computador, plácido como um enxadrista; meu amor, isso vai passar. Estamos ótimos aqui.

Não era verdade. O piso de cimento queimado a fazia sentir-se dentro de uma tumba mesmo antes da quarentena. Mali podia regurgitar à vontade, era fácil de limpar, mas o frio se espalhava pelos ambientes perfeitamente integrados, não havia iluminação indireta que desse jeito. Sem falar na área de serviço, simplesmente esquecida pelo arquiteto — e o mais estranho foi o casal não ter se dado conta disso na hora do projeto. Agora, os lençóis ficavam estendidos de forma improvisada na área externa “roubada” ao prédio, por ser andar térreo. E Fran, bem, Fran tentava disfarçar o constrangimento cada vez que saía do banheiro social com comentários sobre o piso de seixos rolados — “pedrinhas” — ou o sensor da torneira — “sempre me assusto”.

Leandro, não quero mais predinho antiguinho e cheio de diminutivos em Ipanema. Quero uma cobertura em São Conrado, perto da minha mãe. Gabi, cobertura é muito convencional. Além disso, no meio dessa pandemia, vai ser difícil um corretor vir aqui.

Mas veio.

— A decoração é linda, material de primeira — a corretora devia estar sorrindo. Só que a tendência no momento é por imóveis com varandas, janelões com sol, você sabe.

Pelo visto, ela e a torcida do Flamengo queriam morar numa cobertura ensolarada. Depois de quatro meses trancafiada numa tumba gourmet, Gabriela já era arrasadoramente convencional por causa dos lençóis que não secavam, da banheira de plástico encobrindo o piso de seixos, da necessidade de tomar vitamina D. Talvez fosse convencional desde as primeiras noites em claro por causa de Mali. Queria se mudar para uma cobertura. Amanhã.

— Leandro, a corretora botou o preço lá pra baixo. Nunca vamos recuperar o que gastamos aqui.

— Meu amor, precisamos de tempo para encontrar os compradores certos, um casal que valorize design, despojamento, estilo de vida mais simples. Você mostrou o bicicletário?

Gabriela olha Mali e só consegue pensar: estou cansada. Não tem sentimentos complexos; apenas está cansada. Naquela noite, como quem diz estou cansada e vou dormir, ela diz a Leandro estou cansada e vou me separar. Ele finalmente tira os olhos do Mac. A pilastra branca parece flutuar no meio da sala, efeito dos spots que brotam do chão de cimento queimado, e não há taças de vinho na bancada da cozinha americana. A qualquer momento o staff da produção surgirá para desmontar o cenário, revelar o artifício da parede de tijolos aparentes, e dizer ok, foi ótimo. Até a próxima.

Gabriela levou Mali para a casa da mãe, que não disse eu avisei. Leandro foi para um flat no Leblon. No apartamento térreo, ótima oportunidade em Ipanema, arquiteto casa cor, ficaram o berço montessoriano no quarto do bebê e a escrivaninha flutuante no escritório, detalhes que a corretora considerou atraentes para justificar o preço pedido pelos proprietários. Mesmo assim, imóvel difícil de trabalhar, em prédio antigo sombreado por espigões, sem vaga na garagem. Bom mesmo de vender, durante a pandemia, era cobertura.

Marta Barcellos

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1966. Seu livro de estreia, Antes que seque (Record, 2015), venceu os prêmios Sesc de Literatura e Clarice Lispector (Biblioteca Nacional).

Rascunho