Carvão animal

Trecho do novo romance de Ana Paula Maia
Ilustração: Marco Jacobsen
01/03/2011

Capítulo 1

No fim tudo o que resta são os dentes. Eles permitem identificar quem você é. O melhor conselho é que o indivíduo preserve os dentes mais que a própria dignidade, pois a dignidade não dirá quem você é, ou melhor, era. Sua profissão, dinheiro, documentos, memória, amores não servirão para nada. Quando o corpo carboniza, os dentes preservam o indivíduo, sua verdadeira história. Aqueles que não possuem dentes se tornam menos que miseráveis. Tornam-se apenas cinzas e pedaços de carvão. Nada mais.

Ernesto Wesley arrisca-se todo o tempo. Lança-se contra o fogo, atravessa a fumaça preta e densa, engole saliva com gosto de fuligem e conhece o tipo de material dos móveis de cada ambiente pelo crepitar das chamas.

Acostumou-se aos gritos de desespero, ao sangue e à morte. Quando começou a trabalhar, descobriu que nesta profissão há uma espécie de loucura e determinação em salvar o outro. Seus atos de bravura não o fazem julgar-se herói. No fim do dia, ainda sente os seus impactos. É na tentativa de preservar alguma esperança de vida em algum lugar que todos os dias ele se levanta e vai para o trabalho.

Seus fracassos são maiores do que os sucessos. Entendeu que o fogo é traiçoeiro. Surge silencioso, arrasta-se sobre toda a superfície, apaga os vestígios e deixa apenas cinzas. Tudo o que uma pessoa constrói e tudo o que ostenta, ele devora numa lambida. Todos estão ao alcance do fogo.

Ernesto Wesley não gosta de atender a ocorrências de acidentes automobilísticos ou aéreos. Não gosta do ferro retorcido e muito menos de ter de serrá-los. A motosserra lhe causa mal-estar. Enquanto separa as ferragens, o tremor do corpo o faz perder por breves instantes a sensibilidade dos movimentos. Sente-se rígido e automático. Um erro é fatal. Se alguém erra numa profissão como esta, torna-se maldito, um condenado. É preciso arriscar-se o tempo todo. É para isso que é pago. É para isso que serve. Foi treinado para salvar, e, quando falha, os olhares de culpa fazem a sua honra arrastar-se em pó.

A única coisa que gosta de enfrentar é o fogo. Desviar das labaredas e correr das chamas violentas quando encontram abundante oxigênio. Arrastar-se no chão que range sob seu ventre, sentir o calor atravessar seu uniforme, a queda de um reboco, o desabamento de um andar sobre o outro, a fiação pendurada e as paredes partidas. O crepitar das chamas que cronometram seu tempo de resistência, o iminente instante da morte e, por fim, suportar um peso maior que o seu sobre as costas e resgatar alguém que nunca mais esquecerá seu rosto embaçado pela fuligem preta.

Ernesto Wesley é o melhor no que faz, mas pouca gente sabe disso.

Sorri para o espelho do banheiro e em seguida passa fio dental. Limpa cuidadosamente todos os vãos e conclui a limpeza com um enxágüe bucal sabor menta. Seus dentes são limpos. Poucas obturações. Um molar possui uma jaqueta de ouro. Derreteu a aliança de casamento da mãe morta e revestiu o dente. Isto é para identificação, caso morra trabalhando ou em outras circunstâncias. Ter um dente de ouro é peculiar, e isto fará com que o reconheçam com maior facilidade.

— Como está o Oliveira? — pergunta um homem usando o mictório.

— Disseram que bem — responde Ernesto Wesley. — Mas tiveram de amputar a mão.

— Diabo!

O homem termina de usar o mictório e aproxima-se da pia para lavar as mãos. Olha para elas e suspira. A água sai num fio de cor bege.

— Essa torneira vive com defeito — diz o homem.

— Não é a torneira. Tem pouca água aqui.

— Essa água está imunda.

— É o encanamento velho. Está tudo velho.

— Isso me faz sentir ainda mais velho. Acharam a dentadura do Guimarães?

— Eu procurei nos escombros, mas não encontrei.

— Como identificaram o corpo?

— Uma marca de nascença nos pés. Aquele pé ficou praticamente intacto justamente pra identificá-lo.

— Sem os dentes, só mesmo um lance de sorte como este.

— O Guimarães teve muita sorte mesmo. Seis corpos estão destruídos e ainda sem identificação. Tem outro colega sumido.

— Sei… o Pereira.

— Agora, só quando a perícia liberar.

— O Pereira tinha dentes pequenos e pontudos.

— Eram horríveis e estavam cariados.

Os dois homens entreolham-se pelo espelho e permanecem escutando por alguns segundos o arrulhar inquietante da lâmpada fluorescente que crepita vez ou outra insinuando queimar a qualquer instante.

— São aqueles dentinhos feiosos que vão salvá-lo agora — comenta Ernesto Wesley.

— Se vão. Eu mesmo encontraria o Pereira só em olhar para aqueles dentes.

— Dentes de tubarão.

A porta do banheiro é aberta por um homem baixo e de olhar perscrutador. Ele segura uma prancheta.

— Vocês dois precisam atender um sinistro.

Ernesto Wesley termina de usar o mictório e fecha a braguilha.

— Batida de dois carros e um caminhão. Tem gente presa nas ferragens.

— O Frederico é bom em serrar.

— Ele está de folga hoje. Só tem vocês dois.

— Quantas vítimas?

— Seis.

— Bêbados?

— Dois deles.

— Me sinto mais a porcaria de um catador de lixo — murmura Ernesto Wesley, que estava calado até o momento.

— Não deixa de ser — diz o homem.

Os dois homens seguem o terceiro e vão para o caminhão. A ocorrência fica a cinco quilômetros, numa auto-estrada.

— Vontade de fumar — diz Ernesto Wesley.

— Eu também. Não sei como você consegue ter dentes tão brancos.

— Uso bicarbonato de sódio pra clarear.

— Você tem os melhores dentes do grupamento, Ernesto.

— E você tem os melhores incisivos que já vi em alguém. Um retângulo perfeito que deixa uma mordida inconfundível nos seus sanduíches.

— Você já percebeu isso?

— Eu e todo o grupamento. Sei quando um resto é seu pela mordida.

O homem, admirado, ajeita a fivela do cinto de segurança até ouvir o clic.

— Não gosto de serrar. Fico apreensivo — murmura Ernesto.

— Talvez não será preciso.

Ernesto Wesley olha para o céu. Está estrelado e a lua ainda não apareceu. Ele estica os olhos e revira a cabeça, mas não a encontra.

— Acho difícil. Alguma coisa me dizia que hoje eu ia usar a motosserra — comenta Ernesto Wesley.

— Odeio bêbados — murmura o homem.

— Eu também — concorda Ernesto Wesley.

— É como se fosse ontem minha irmã morta na estrada das Colinas.

— Eu me lembro. Tive de arrancar o sujeito das ferragens. Um careca desgraçado.

— Ele partiu ela ao meio.

— Me lembro disso também.

— Queria matar o desgraçado na ocasião. Cheguei a isso aqui, ó, de matar o sujeito.

— Somos pagos pra salvar até mesmo os desgraçados, carecas e bêbados filhos da puta.

— Eu tô cansado de tanta merda de gente irresponsável.

— Vamos ter de conviver com o cheiro dessa merda.

Afinal, nos pagam pra isso — conclui Ernesto.

Ernesto Wesley abaixa a cabeça, resignado. Os olhos ardem, lacrimejam, mas ele não chora faz três anos. Não consegue desde então. Suas lágrimas evaporaram com o calor do fogo. O silêncio recai sobre os homens. Estão cansados, mas aprenderam a agir por impulso. Já conhecem seus limites e eles são extensos. A auto-estrada margeia um rio e Ernesto Wesley o observa ao largo de uma extensão que faz seus olhos espremerem-se na tentativa de alcançar os limites das doces e imundas águas turvas, como se procurasse em vagos vãos que estreitam para o fim algum sentido ou destino, mas nem sempre é possível ir além do que os olhos conseguem atingir. Ernesto Wesley é um brutamonte de ombros largos, voz grave e queixo quadrado, porém tudo isso se torna pequeno se se reparar em seus olhos. São olhos profundos, de cor negra e de intenso brilho. Mas não é um brilho de alegria, senão do fogo admirado e confrontado diversas vezes. Quando se atravessa a barreira de fogo que ilumina o seu olhar, não há nada além de rescaldo. Sua alma abrasa e seu hálito cheira a fuligem.

Até completar dezesseis anos, Ernesto Wesley confrontou quatro incêndios nas casas em que morou. Sua família pacífica era constantemente coagida pelo fogo que começava sorrateiro em algum cômodo da casa. Nunca se feriram gravemente. Da última vez, salvou a vida do irmão mais velho, Vladimilson, que ficou preso dentro do quarto quando a porta emperrou. Ernesto Wesley tinha pavor do fogo e amolecia até mesmo se confrontado com uma fonte de calor ou uma lufada de ar quente. Mas, quando retornou ao interior daquela casa para resgatar o irmão, foi queimado pela primeira vez. Estranhamente percebeu que o fogo não lhe fazia mal. Não sentiu dores ou ardência. Carregou Vladimilson desmaiado sobre os ombros e nunca mais perdeu uma chance de estar de frente para as chamas.

Ernesto Wesley não sente o fogo queimar sua pele. Possui um raro tipo de doença, analgesia congênita: uma deficiência estrutural do sistema nervoso periférico central. Isto o torna insensível ao fogo, a facadas e espetadas. Desde então, passou a experimentar o fogo constantemente.

A doença foi ocultada por ele para ingressar na corporação; talvez se soubessem dos riscos que corre nunca o admitiriam. Ele pode caminhar sobre chamas, atravessar colunas ardentes e ser atacado por labaredas. Ele se queima, mas não sente.

Poucos chegam à idade adulta com tal doença. Marcas roxas estão por todo o seu corpo.

Aprendeu a se apalpar para sentir algum osso fora do lugar. Já quebrou as pernas, costelas e dedos. Ernesto Wesley é muito atento ao próprio corpo e acredita que essa doença vai além da patologia clínica; é um dom. Sem sentir dor sua coragem é engrossada a fazê-lo ir aonde nenhum outro homem conseguiria; talvez apenas outros poucos.

Faz consultas e exames regulares para saber se seu corpo e saúde estão em ordem. Convenceu-se de que pode suportar maiores provações do que os outros. Porém, existe uma espécie de dor à qual não é insensível. Seu coração, em contrapartida à doença, sofre de um mal irreparável: a dor da perda. Esta o mortifica severamente.

Luzes vermelhas e amarelas brilham no meio da auto-estrada. Dois policiais sinalizam para os carros seguirem por uma única faixa. O carro pára e eles descem. O asfalto ainda está quente, reflexo do intenso calor do dia.

A distância, Ernesto Wesley percebe o emaranhado da lataria esmagada. Dois carros e um caminhão colidiram. Fundiram-se. Trabalhará mais do que havia imaginado. Coloca um macacão especial, luvas de aço, um capacete para soldar e apanha a motosserra para libertar as vítimas das ferragens. Espera ser acionado. Outra equipe de socorro já havia chegado ao local. Ernesto Wesley só precisará derrubar as árvores. É o que costuma dizer quando separa as ferragens.

— São cinco vítimas, ou melhor, seis. Três estão presas nas ferragens, incluindo um cachorro. As outras duas já foram levadas pro hospital — diz um dos bombeiros da outra equipe.

Ernesto Wesley verifica o estado dos carros e do caminhão. O motorista do caminhão foi o único que não sofreu nenhum dano. Está de pé, próximo aos bombeiros, tentando ajudar. Este é o seu quinto acidente e de todos escapou. A placa quadrada pregada no caminhão preocupa os bombeiros. É líquido inflamável. Explosão química seguida de fogo é uma das coisas mais difíceis de se escapar. Um dos bombeiros fez a checagem e constatou que não há risco de vazamento. Ernesto Wesley liga a motosserra e já não ouve nenhum gemido, sirene ou coisa que o valha. Está imerso no anestésico impacto da serra e no barulho estridente provocado pelo atrito da lâmina contra os nós de ferro.

A única coisa que agrada Ernesto Wesley neste árduo trabalho de serrar ferragens são as fagulhas que se lançam no ar, ao léu, dançando nervosamente. Algumas delas não se espalham no ar, elas descem e tocam o chão.

Uma menina de cinco anos está presa e acordada. Seu cachorro labrador está esmagado sobre seu colo. O sangue do animal cobriu o rosto da menina e ela durante todo o tempo chama pelo cão. Será preciso serrá-lo junto com as partes do carro; o problema será o trauma para a menina. Primeiro será necessário remover a cabeça e depois os outros membros. Se não fosse o cachorro, a menina estaria morta. Ernesto Wesley não pode se comover. Ele precisa derrubar as árvores. Ainda que sinta arder o coração sempre que resgata alguma criança, não importam para os outros seus acidentes pessoais. Nesta profissão não é possível remoer as próprias tragédias. Não é permitido nenhum tipo de emoção. É sobremaneira uma atividade que enrijece o caráter e que o coloca de frente para as piores situações. Tudo se torna pequeno quando deparado com a morte. Não uma morte calma, sonolenta, mas a morte que espedaça, desfigura e transforma seres humanos em pedaços desconjuntados. Crânios esfarelados, membros esmagados e decepados. Quando alguém em estado de choque percebe que seu pé está a dois metros de distância ou que sua perna caiu no vão que separa as pistas, nunca mais se esquecerá. Podem-se perder: amor, dinheiro, respeito, dignidade, família, títulos e posição social. Isso tudo pode ser reconquistado, mas um membro decepado, nada o trará de volta a seu lugar.

Serra a cabeça do cachorro e parte do painel do carro. Sangue e resíduos de ferro se estilhaçam. A menina está em choque. Duas horas e ela resiste e sai das ferragens segurando uma pata. O mais comovente foi o resgate da menina, mas o pior seria o de seus pais.

O pai perderia algum membro, caso Ernesto não se concentrasse muito. O que dificultou ainda mais foi a chuva forte que durou cerca de quarenta minutos e encharcou seu macacão. Todos os homens parecem fatigados. Restam poucos curiosos no local.

O mais cansado de todos é Ernesto Wesley, e isto fica evidente quando a serra trepida entre as engrenagens do veículo, bambeia em sua mão e atinge a panturrilha do homem. Ele pára um pouco. Respira fundo. Olha para os lados. Está serrando faz cinco horas.

— Este homem deve ser substituído — ordena o oficial responsável pela operação.

O outro bombeiro, que foi juntamente designado para o trabalho com Ernesto Wesley, assume o controle da motosserra. Após vestir o uniforme de proteção, ele dá dois tapinhas nas costas de Ernesto Wesley.

— Agora é comigo. Vá descansar um pouco. Você está horrível, homem.

— Eu te disse que odeio serrar. Estou com muita dor de cabeça.

O bombeiro, quando tenta remover a mãe, ela já está morta. É possível verificar seus batimentos, pois a cabeça está reclinada sobre o banco traseiro, ao lado da janela aberta. Ele precisa serrar por mais uma hora. Fagulhas são lançadas vez ou outra. E, quando se tem líquido inflamável vazando sem que ninguém perceba, isto é fatal. O pior nesta profissão é que o erro de um atinge a todos os outros. Não é possível cometer erros. Mas, quando acontece, geralmente é fatal. O bombeiro que serrava foi lançado para o outro lado da pista enquanto Ernesto Wesley engolia um analgésico ao lado da ambulância. O corpo do homem em chamas cruzou alto o céu da madrugada. Ele sentiu a pele enrugar, os cabelos encarapinhar e, ao bater no asfalto, ainda vivo, escutou os ossos estalarem em choque com as chamas que inflamavam rápido até as entranhas. Tornava-se carvão animal e podia sentir o forte cheiro queimado de sua pele, músculos, nervos e ossos.

Seus dentes estavam intactos e até os legistas concordaram: eram os melhores incisivos que viram num morto.

Ana Paula Maia

Nasceu em 1977, em Nova Iguaçu (RJ). É autora dos romances O habitante das falhas subterrâneas (2003), A guerra dos bastardos (2007), Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos (2009) e Carvão animal (2011). De gados e de homens será lançado em breve pela Record.

Rascunho