Carta ao rei de Portugal

Como estará o Brasil mais de 500 anos após o descobrimento pelos portugueses?
17/10/2015

Senhor,
Posto que já lá se vão mais de quinhentos anos desde o achamento das terras que hoje chamam Brasil, inda assim empenho-me em dar-vos por escrito notícias acerca deste numeroso povo que outrora foi nosso. Não se abespinhe Vossa Alteza ao constatar que o faço do Além, pois asinha há-de reconhecer a boa vontade deste humilde cronista, o qual aconhece a própria inaptidão para esta empresa e, qual Fernão Lopes, que antes dele afirmava não formosear palavra, busca a verdade nua, se a há.

Bem certo estou de não ser o primeiro a produzir um relato deste calibre, e se mal não recordo, houve um senhor, por nome Brás e apelido Cubas, que feito semelhante realizou. Outrossim, ao que me parece, entre certas pessoas, por espíritas reconhecidas, dá-se a prática daquilo que denominam psicografia, consistindo o ato em receber, de alguém já morto, mensagem redigida através de um médium.

Que não sobrevenha a Vossa Alteza temor, ao tomar conhecimento de tal ultraje. Não apenas estas pessoas, mas também outras, se autoproclamando líderes religiosos e escondendo-se debaixo de nomes vários, saem a pregar evangelhos e doutrinas que não são aqueles de nosso Senhor Jesus, o único, e que vive e reina para todo o sempre, amém! Abaixando a fé, dão-se a práticas de profanação e pecado, louvando uns a deuses estranhos, como se fossem homens primitivos, outros se fazendo esquecidos do baptismo e da primeira comunhão. Tudo isto dizem ser religiões, quando em verdade não passam de heresias! Eu, por mim mesmo, vendo-os cá do além-túmulo, o que faço é rechaçar atitudes como estas, diligentemente guardando a fé verdadeira e aguardando a volta do filho de Deus, se a de D. Sebastião, o Encoberto, não a preceder. No mais, a nada prasmo, porque Aquele que é maior que todos há de julgá-los com vara varonil.

Na derradeira feita, no ano de mil e quinhentos, tive a oportunidade de relatar a rei Manuel I, o Venturoso, os resultados da exploração que nossa armada empreendeu, comandada por Pedro Álvares Cabral. Pude comentar a respeito daqueles indómitos habitantes, os índios. Os quais hoje se encontram, em grande maioria, devidamente convertidos à santa religião. Até onde foi possível, estão enfim assimilados à nossa cultura, civilizados, graças ao labor de santos como Manuel da Nóbrega e José de Anchieta (este sem dúvida o mais eficiente de todos), que lhes eliminaram o aspeito e tradições bárbaros. Tendo abandonado a lascívia, andam vestidos; tendo abandonado a antropofagia, tragam o trigo, sorvem o vinho; tendo abandonado o paganismo, creem em Christo. Felizmente, nossa fé faz-se ainda presente nos nomes de muitos lugares, bem como na Constituição deste povo.

Pena é saber que a Ilha de Vera Cruz, digo, Brasil, tenha conquistado sua independência, há já quase dois séculos. Vossa Alteza, todavia, não se lastime a perda de admiráveis riquezas, terras e mão de obra: durante esses anos, daqui tenho observado que, por meios levianos e vulgares, é possível ganhar-lhes a confiança e extrair o que for necessário. De ligeiro convencem-se com promessas adulatórias. E isto não apenas os pobres, os quais abundam, mas igualmente os classes-médias, tão corruptíveis.

Creio que a falta de caráter e unidade desta gente justifique-se por serem quartejados de mestiços das três raças que a compõem, quais sejam o índio, o branco e o negro. Desta mixórdia, surgiram híbridos, os mamelucos, cafuzos e caboclos, tendo-se chegado a um nível tal de mistura racial, que não se é mais possível efetivar a eugenia, nem mesmo o foi quando, influenciados pelas ideias de nossos vizinhos, esforçaram-se por trazer imigrantes oriundos de nosso soberano continente.

Não se observa, em nenhum deles, uniformidade de compleição ou espírito, o que há são inúmeras culturas e divergências. Também não conservam admiração pelo que lhes é nacional, preferindo o estrangeiro. Não foram poucas as vezes que testemunhei intolerância e desrespeito com eles próprios, fosse entre os plebeus ou mesmo entre suas autoridades.

Vossa Alteza contentar-se-á com o fato de que, ao menos, tais autoridades perpetuaram a tradição de colonização que lhes outorgamos. À sombra de nosso exemplo, impõe-lhes ideologias; convencem-lhes. Para tanto, servem-se da feliz contribuição da milícia (uso o termo como o fez Machiavelli, embora me pareça que, no dialeto deles, chamem de polícia a força de armas) para lhes inculcar, através de métodos de coerção e repressão, o que for necessário; mas de forma mais amainada, têm à disposição instrumentos peculiares, de nomes televisões, computadores, celulares.

Cá não meto o bedelho, por ignorar como funcionam. Sei que são assaz eficazes, levando muitos à alienação necessária para a atuação do Estado. Aliás, esses objetos, celulares, são deveras curiosos, pois, uma vez nos ouvidos, põem seus donos a conversar com alguém que dizem existir, e que não veem.

Quanto à língua… ó, que horror! Soem chamá-la de portuguesa, contudo o que se ouve é algo macarrônico, infestado de neologismos e estrangeirismos. Certamente não é a de Camões que usam, a mui elegante e expressiva, e sim um brasileiro, dialeto, sub-língua. Já desconhecem o uso correto do pronome tu, e mal sabem da existência do pronome vós… Cometem torpezas com a gramática, além de possuírem pronúncia e sotaque muitas vezes deploráveis, errando em concordâncias constantemente. Retórica não há. E isto, tendo se refletido na literatura desta gente, gerou, por vezes, construções estapafúrdias. Horrores, horrores, por toda parte.

Desde que fui trasladado, Vossa Alteza, para esta pós-vida, após a luta com o povaréu das Índias, a outra coisa não tenho me disposto senão tomar notas dos costumes dos brasileiros. Sem me contaminar com pensamentos de jaez sul-americano, venho mantendo lúcidas minhas faculdades mentais, a fim de que, no tempo certo, pudesse transmitir-lhe, com máxima fidelidade, informações desta terra, para a qual creio não haver mais salvação.

Destarte, dou a Vós conta de parte do que aqui vi e ouvi. E, se Vossa Alteza mo permite, peço: tal que Ela receber a crónica deste escrivão, possa dar-lhe as devidas alvíssaras e condecorações, pelos simplórios serviços prestados.

Beijo-vos as mãos, também os pés ou o que for preciso.

Deste Brasil mas para sempre Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, quarta-feira, vinte e dois de abril de 2015.

Pero Vaz de Caminha
Post scriptum: Ora, vejo Vossa Alteza, em sua galhardia e magnanimidade, subindo pela alta escadaria que dá para o nada. Acompanhai-me, ó rei, dai cá as mãos para que eu possa beijá-las, e me acompanhai. Vistes que, em vida, é deveras impossível suportar a degradação humana, e caso queiramos conservar o que nos resta de sanidade, bem é excluirmo-nos deste antro a que chamam Brasil e cá imperarmos em paz, enquanto esperamos a vinda do Quinto Império. Gloria in excelsis Deo.

Thales Mendes

Nasceu em Nova Iguaçu (RJ). Tem 18 anos. É graduando em Letras Inglês/Literaturas pela UFRRJ, com ênfase em literatura. Atualmente, atua como bolsista de Iniciação Científica pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), trabalhando com a temática “Cognição e leitura”.

Rascunho