Carta a um agente literário em Porto Alegre

Conto inédito de Luís Roberto Amabile
Ilia Repin / reprodução
05/12/2020

André. Eu não queria deixar de participar, mas será possível? Aceitarão coelhinhos? Fiquei pensando na proposta editorial, naquilo de “não perder a perplexidade, sem nunca se curvar ao desespero”. O problema é que a perplexidade, para mim, é uma injeção de lidocaína na veia. Evita o desespero, mas fico meio zumbi. Passo a não sentir nada, ou não consigo expressar o que sinto, o que no final dá no mesmo.

Sei que muitos tomam o contexto como estímulo. Dizem até que o Chico Buarque compunha melhor na época da ditadura. Aplaudo. Mas eu não sou assim. Desde o final do ano passado, me sento para escrever às cinco da tarde, como sempre, na tranquila sala festejada de sol. Só que escrevo entre névoa e tédio. Ou, antes, não escrevo. Vacilo, hesito, vasculho textos antigos, começo outros que nunca termino. Fico pensando que os textos que escreveria não valem. O que tenho a dizer diz de mim, dos meus pequenos dramas. São questões particulares, sempre escrevi para me resolver, não para resolver o mundo, e não sei se posso continuar quando tudo ao nosso redor desaba. Sinceramente, o que importa agora os dramas de mais um homem branco burguês de classe média em crise pessoal e sexual? Nesse ponto, admito, entro em leve desespero, mas não tem a ver com o momento político. Se bem que acaba tendo.

André, não me desespero em face do desgoverno do Brasil, mas sim diante do meu desgoverno para produzir literatura sob tais circunstâncias. Então, para escapar desse paralisante círculo vicioso, comecei a emular textos queridos. E tem funcionado. Gosto de pensar que recorro à literatura para escrever literatura. Justaponho trechos de outros aos meus, confundindo-os, misturando, encaixando, e assim os trechos todos encaixados formam um novo texto que não deixa de ser meu, muito meu, pois ninguém o tinha pensado com aquela configuração e, por consequência, com aquele sentido.

Pareceu-me justo informá-lo disso, André, então envio essa carta, e porque gosto de escrever cartas, é outro jeito de continuar escrevendo. Escrevo também por causa dos coelhinhos, eles são o principal motivo.

André. Eu não queria deixar de participar da coletânea. Já lhe disse que gostaria de ser um escritor mais racional, que escreve conforme um simples e satisfatório plano ou encomenda. Seria menos sofrido, seria menos um parto a cada texto. Bem, dessa vez, pari coelhinhos. Fui incapaz de escrever um conto de duas a oito páginas, como você pediu. Não me censure. André, não me censure. De quando em quando me acontecia de vomitar um celhinho. Não é razão para que a gente tenha de se envergonhar e estar isolado e andar se calando. Não quero me calar, André, não posso. Preciso lhe contar dos coelhinhos. Desta vez aconteceu durante uma visita à minha família.

Eu sou da Serra, você já deve ter percebido que guardo um pouco do jeito de falar separando bem as sílabas e reforçando a tônica aberta de cada palavra. Quando saí da casa dos meus pais e fui para Porto Alegre estudar, eu tinha vergonha do meu sotaque serrano. Hoje tenho vergonha de outras coisas.

A bem da verdade, há do que se orgulhar na Serra, André. O meu município, por exemplo, tem o segundo IDH do Rio Grande do Sul. Mas a qualidade de vida, André, não torna as pessoas melhores ou mais esclarecidas. Onde eu cresci, por exemplo, 80,01% da população votou para a candidatura do militar Messias. Poderia ser pior, já que esse percentual está abaixo da média da região, eu andei pesquisando. Bem pouco abaixo, é verdade. O município contíguo, por exemplo, tem 80,60% de fiadores daquele ser (repare como digo “ser” e não “ser humano”) que hoje ocupa a presidência. Poderia ser ainda pior: numa cidade a 76,6 quilômetros da minha, um “pequeno paraíso italiano”, como gostam de falar lá, e que poderia muito bem ser parte da Itália dos anos 20 e 30, o rebanho chegou a 82% dos viventes. O maior índice em todo o Brasil, o que, óbvio, é motivo de orgulho. O problema de ser gado, André, é que podem estar te levando para o abatedouro e você nem percebe.

Mas como eu estava contando, peguei a estrada à direita, bem à direita, à extrema direita de Porto Alegre e fui passar uns dias na casa de meus pais. E preciso dizer que a minha família também poderia ser bem pior. Apesar de ter apoiado o golpe, meu pai não endossa o que veio depois. A minha mãe acha o que o meu pai acha. A minha irmã não, ela tem ideias próprias e por sorte são parecidas às minhas. O marido dela também se esforça. Ainda assim, ainda assim…

Se alguém vive a mesma vida no mesmo lugar por muito tempo, os valores do lugar, acabam se impregnando. É inevitável. Todos na minha família vão à missa. O meu cunhado vai ao culto. Todos concordam que está errado mulher beijar mulher e homem beijar homem (eles não sabem de mim, André). Todos são carnívoros convictos e por muito tempo fizeram questão de me oferecer carne nas refeições, mesmo sabendo do meu vegetarianismo. Todos desconfiam dos refugiados haitianos que no ano passado foram alocados na Serra. Todos concordam que o governo deve se preocupar mais com os que são daqui, assim como não tem de gastar dinheiro com bandido na prisão. O meu cunhado até se exaltou uma vez e disse que “tem de pegar e matar todo mundo, porque tem gente que nasce má e não tem jeito”.

André. Cheguei à casa de meus pais a tempo de jantar. Dormi cheio já na primeira noite e acordei de madrugada tossindo. Alguma coisa queria sair da minha garganta, não chegava a provocar ânsia de vômito, mas eu mal conseguia conter a tosse. Depois, durante o dia, parou. Só que nas outras madrugadas eu acordava do mesmo jeito e, como não conseguia voltar a dormir, ficava lendo e tentava escrever. Até que numa madrugada senti na garganta a penugem morna que sobe como uma efervescência de sal de frutas. Tudo transcorreu em um brevíssimo instante. De mim saiu um coelhinho. Ele estava na minha frente, André, na tela, preso pelas orelhas. Um coelhinho branco, normal, só que muito pequeno. O que eu ia fazer com aquilo? Pensei em jogá-lo fora, mas olhei para ele e ele parecia contente. Eu não poderia me livrar dele assim sem mais nem menos, nem dos outros. Porque nessa mesma noite, André, vomitei um coelhinho negro. E dois dias depois, outro branco. E na quarta noite, um coelhinho cinza.

Alimentei todos com alface, uma planta de trevo e também com sopa de letrinhas misturadas à cenoura ralada. Apenas o coelhinho do primeiro dia comeu, gostou e cresceu. Me parece perfeito. Os outros preferiram não comer, escolheram ficar em miniatura para sempre. Eu também os acho perfeitos, são todos meus filhos, André, vieram todos das minhas entranhas. Cuide bem deles. Beijo.

Pequena cena familiar 1
Sentado à mesa posta pela filha, o pai e o marido da filha tomam cerveja e comem azeitona e queijo minas frescal cortado em pequenos retângulos salpicados com orégano. Justo dizer: o pai foi quem pegou na geladeira o pote de azeitonas e o queijo, cortou o queijo, tirou as azeitonas do pote, misturou o queijo e azeitona num prato, e por cima salpicou orégano.

Enquanto isso, em pé ao pé do fogão, a mãe mexe a polenta. Em dado momento, o pai pergunta se vai demorar, pois ele está com fome. A mãe responde que já já. Em seguida troca comentários com a filha. Ouçamos:

Mãe – Sempre que estou cozinhando, o seu pai fica em cima. É como se nunca tivesse visto comida.

Filha – O Flávio é igualzinho. Fica pressionando. Parece esfomeado. O Leonardo tá começando agora. É só me ver na cozinha que pergunta se tá pronto.

O Leonardo, onde está nesse momento? Tum tum tum, está brincando com um boneco de plástico, um soldado com uma metralhadora, o Léo, o meninão da mamãe, o homenzinho do papai, o xodó da vovó e do vovô, tum tum tum, matei o bandido, o bandido, matei, brada o infante.

Pequena cena familiar 2
A matriarca mulher humilde
de vida na lida e pai pajé
A matriarca de bom coração
e justos valores
não tinha nada contra negro
Mas o Bruno seu neto
sendo tão bonito
ele podia ter arrumado uma branquinha.

Falta fé
No culto nada oculto
o espalhafatoso pastor
ao paralítico pregou:
Levanta-te e anda!
Então os fiéis entoando ergueram o paralítico
que mirou o céu e bem de perto viu
o chão.
Faltava-lhe fé.

Miniconto à la Andy Warhol sobre o Brasil contemporâneo (2019)
Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.

Luís Roberto Amabile

É escritor e professor de Escrita Criativa e Teoria da Literatura na PUCRS. Autor de O amor é um lugar estranho (2012) e O livro dos cachorros (2015). Colaborou com Luiz Antonio de Assis Brasil em Escrever ficção (2019). Em 2020, publicará O lado que não era visível para quem estava na estrada (Zouk).

Rascunho