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Leia o poema de Miguel Sanches Neto
Miguel Sanches Neto, autor de “Chá das cinco com o vampiro”
01/05/2010

Carregado com sacolas de livros
ultrapassando a hora do almoço
um alimento qualquer nos olhos
caminho pelo Passeio do Prado
Havana tão destruída e tão íntegra
corrompida como qualquer cidade
vendedores oferecendo charutos
a preços baixos e falsificados
o turista sempre o grande otário
mesmo no ventre revolucionário
desço pelo Passeio do Prado
dois guardas anotam os nomes
de algumas prostitutas meninas
que eu amaria doidamente
não com a lâmina cega do desejo
que quanto mais se refrega
menos nos deixa satisfeito
eu amaria aquelas meninas
negras as barrigas só estrias
como um pai incestuoso
os policiais tomam notas
num caderno tão corroído
como os prédios de Havana
e os muitos jovens a caminho
de casa são nuvens perfumadas
e estão ali mais em conversa
do que em uma batida
esses policiais essas meninas
meninas me dêem seus corpos
quero me afundar entre seios
o mundo também pode ser seda
negra e esgarçada mas seda
para quem está sempre sedento
e parando num bar eu peço
água com gás e café amargo
e ali leio textos do poeta
que estou indo agora visitar
me preparando pro encontro
o ex-jovem e o veterano
conversarão em que idioma?
eis o seu velho endereço
Calle Trocadero, 162, bajos
um guarda me indica o rumo
os livros que levo pesam muito
e me movo entre escombros
prédios que se esboroam
e o tempo em sua juventude
tenta reinventar um sonho
ando pela Calle Trocadero
desviando de jovens na calçada
um pedreiro peneira a areia
tão amarela quantas as casas
e o acúmulo desta matéria
imita no chão uma ampulheta
passo pelo pedreiro e chego
àquele que é agora o centro
da Havana íntegra no tempo
a casa térrea do poeta
num edifício de três pisos
sob as pobres moradias
onde o vento enche saias
estendidas numa das sacadas
embandeirando as peças íntimas
forço a porta na intimidade
de quem admira a sua obra
somos alguém de casa agora
mesmo nunca tendo estado ali
empurro a porta que não se abre
o poeta não pôde me esperar
e não sei o que fazer comigo
homem magro carregando livros
nesse idioma estrangeiro
como sempre é a grande poesia
para onde eu me enviarei?
terei que ir para que tempo?
sigo até o meio da outra quadra
volto e forço uma das janelas
não se deixa um leitor pra fora
o homem sentado na sala
é o vigia guardando o nada
explico que busco o poeta
não pode entrar ele decreta
o poeta me espera insisto
um poeta sempre espera
eu não estou então mentindo
deixe-me ver ele responde
com as palavras de seu idioma
e sai lento pelo ventre vazio
e quando enfim retorna diz
a casa foi fechada para visita
volte no próximo século
ele fala como quem brinca
então apelo que sou do Brasil
gosto das novelas brasileiras
ele comenta e me envergonho
de que sejamos apenas amados
pelo que temos de mais fácil
e digo logo adeus e me afasto
mas antes olho aquela fachada
tingida de um amarelo-merda
saiba que vim meu caro
a porta estava cerrada
pois reformam a velha casa
em seu primeiro centenário
para o qual não poderei ficar
sigo para o Passeio do Prado
onde você passeou seu passado
os policiais ainda falam
com as prostitutas meninas
Havana tão corrompida
Havana assim tão íntegra
me abandono de mim mesmo
por ruas que lhe foram íntimas
poeta José Lezama Lima
e este poema quem o assina
um homem que carrega livros.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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