Aqui caberia um pedido de desculpas, caso eu tivesse prometido cartas diárias ou semanais. Como não as prometi, em lugar do perdão, peço que encare como mera coincidência o fato de esta carta ser escrita no dia exato em que se completa um mês de minha estada na cidade, e não como o prenúncio de um hábito. Na realidade, já lhe anuncio que esta é a última carta que lhe escreverei e, por isso, como você ainda há de entender, também não posso me desculpar.
Se temo o caráter definitivo da primeira frase que escrevo sobre uma cidade, sinto-me impelido a dizer que Buenos Aires foi, para mim, neste primeiro mês, um universo indefinível. Mas isso é só para me livrar da primeira frase. Caminho por suas ruas e não encontro os passos de meus antepassados. Sei que viveram aqui, que aqui traçaram seus desconhecidos trajetos, e gostaria de dizer que isso me toca, que os busco, que tento reconstruí-los. No apartamento deles, que agora ocupo, observo seus retratos. Nenhum traço de suas imagens adivinha o meu rosto. Gostaria de dizer que a água que molha meus ombros no chuveiro é a mesma que molhava os deles, ou que ouço o soar de seus sapatos antigos a cada vez que minha sola de borracha se encontra com o ladrilho silencioso destas calçadas insensivelmente frias. Mas não ouço. Não sinto. Não sou um Borges de olhos abertos a percorrer vias retas, e tampouco busco os antepassados de Borges. Vasculho sua vida, suas histórias, e nelas, mais ainda do que nos retratos presos à parede, sei que não devo reconhecer as minhas, a minha. E, no entanto, em Buenos Aires, sinto que minha vida me invade os pulmões a cada vez que respiro, que o ar que me cruza os lábios carrega pequenas e imperceptíveis gotas de futuro. E fantasio que dessas gotas se constitua o frio.
Em Buenos Aires me transformo, converto-me em outro, cada passo me envelhece mais do que dez horas transcorridas nas quentes e inúteis tardes paulistanas. Buenos Aires me rompe os hábitos, estraçalha-me a rotina, remete os vícios de passatempo aos idos de um passado cada vez mais longínquo. Aqui, vejo no reflexo de outros olhos, ainda que sejam poucos os olhos que me emprestam seu espelho, a imagem do homem que um dia hei de ser. Defronto-me com o futuro, sim, mas minto. Se esta carta lhe alcança os olhos é porque minto.
E nem sei por que lhe escrevo tamanhas amenidades, e menos ainda amenidades carregadas de tal grandiloqüência. Isso devo ao espanhol, a seu dramatismo que, para sorte ou azar, me arrebenta as correias brasileiras da despretensão. Em espanhol, permito-me usar as grandes palavras, não as temo como em português, e sinto que minha sina é escrever em português com a permissão de usar a palavra sina. Mas nem sei por que lhe escrevo tamanhas amenidades, se tenho consciência de que não lhe interessam. Digo mais, nada nesta carta irá lhe interessar. Nada concerne verdadeiramente a você, somente a mim, somente a este eu que escreve. Importa-se, porém, de me servir de destinatário? De me ler? Importa-se de guardar algumas confissões sem aparente propósito? Caso se importe, rasgue a carta. Na realidade, se posso lhe ser incompreensivelmente sincero, se chegou a recebê-la, penso que deve rasgá-la. Não lhe servirá para nada.
Faço digressões, sim, e você as percebe. Se me conhece bem, como acredito que seja, sabe que estou dando voltas antes de lhe contar o que importa. Mas sabe também por que o faço? Por que adio? Por que me atraso? Por medo, sim, essa é a resposta. Medo da incapacidade de expressar aquilo que deve ser expresso. Medo de que as palavras nunca façam jus à experiência, que nunca a descrevam em plenitude, que a traiam e, assim, que a matem. Medo de que as palavras nunca alcancem o futuro que eu a elas destinei, e essas são apenas as palavras. Você me entende. Isso bastará? Talvez não, então prossigo, sob o risco de perdê-lo ainda mais. Medo, sim, mas também o fato de palavras serem sempre aproximações. Nenhuma palavra encerra seu objeto, encerra aquilo que retrata, e assim tampouco um texto pode encerrar um episódio, ou pode encerrar-se. Faço digressões porque tento aproximar-me. E se discorro sobre a própria digressão, é porque transito paradoxalmente entre o desejo de me revelar e o desejo de me cobrir, de me proteger, e esse é mais um artifício que me imponho, um artifício a serviço de meu próprio medo. Hermetismos também consistem em artifícios. Perdoe. Não me abandone. Chego ao episódio.
Um almoço na Recoleta. Um almoço em que a bela garçonete se recusou a me fazer companhia, a responder a meus olhares com um mínimo de simpatia, e eu me resignei a destiná-los a quem quer que se postasse à minha frente, entre minha mesa, meu prato barato, e a porta. Foi um senhor, cujo rosto pouco se diferenciaria dos retratos da parede do apartamento que dizem meu, que a pouco mais de três metros de distância revelou com exatidão um perfil em contraste com a luz advinda da entrada. Exato porque perpendicular, seu corpo em relação ao meu.
Mas a geometria importa pouco. O fato é que ele estava só, e eu estava só, e criou-se em silêncio o entendimento de que nos acompanharíamos durante aquele almoço. O entendimento revelou-se mútuo quando, antes de beber o primeiro gole de sua taça de vinho, ele interrompeu o movimento do braço a meio caminho, esperando que eu empunhasse meu copo. Levantei-o, também, e brindamos, eu ainda desconhecendo a razão por que brindava.
Identifiquei-me com o velho, sim, não tenho por que não dizê-lo. Para não dizer tudo? Para permitir que você descubra as entrelinhas? Não, você pode continuar, mas eu já não tento fazer isso. Haverá entrelinhas ainda que eu não as crie. Haverá incompletudes e incompreensões ainda que eu não as construa. Esse há de ser meu mistério. Mas isso você não pode entender, e talvez também não possa utilizar a palavra mistério.
O fato é que eu pensava nessas coisas, considerando desde aquela hora contar a você esta história que apenas se iniciava, quando seu enredo se alterou. Distraído, nem pude observar o aparecimento de dois outros senhores, que com efusão cumprimentavam meu companheiro e revelavam a ocasião de seu aniversário. Brindáramos por seu aniversário, pensei, e essa percepção dissipou a traição e aliviou-me a tristeza de voltar a almoçar só. Por um instante, imaginei ter percebido no velho o ímpeto contido de me apresentar a seus amigos. Talvez tenha existido esse ímpeto. Talvez tenha desistido de me apresentar por não conhecer meu nome. E, no mais, não poderia ter me chamado a sentar naquela mesa. Àquela mesa, eu não pertencia.
Tomado de surpresa pela dupla intervenção, a princípio não fui capaz de perceber que a identificação produzira, como para Borges, um recorte de tempo. Que o velho, naquele instante, não apenas se assemelhava a mim na solidão do almoço, mas que também era eu, ou ao menos me representava, representava meu futuro. Como Borges, talvez, mas sem a ousadia de contá-lo dessa forma, eu almoçava comigo mesmo, com o eu de muitos anos mais tarde. E isso, se você não pode entender, não há quem possa.
Peço perdão por desrespeitar o tempo adequado à narrativa, tendo inclusive desrespeitado há parágrafos o tom adequado a cartas, mas agora só convém narrar um momento posterior, quando a mesa, agregada a outras próximas, já recebia cerca de dez senhores, todos reunidos para comemorar o aniversário do meu companheiro. O tom, o cenário, já se modificara. Havia alegria naquela mesa, era um almoço animado, regado a vinho e nostalgia. Um almoço em que eu, à parte, sentia compartilhar a posição de espectador com o velho que me representava e de quem eu era testemunha e cúmplice, mas ele feliz por simultaneamente assistir à cena e protagonizá-la. Um protagonista ausente, a observar rostos que lembravam alguns de seu passado, rostos de amigos havia tempo afastados, mas que ainda assim carregavam sorrisos.
Aos poucos, então, num esforço que resultou prazeroso, fui substituindo aqueles rostos pelos de meus amigos, como já substituíra o meu pelo do velho original. Aos poucos, foi surgindo o primeiro amigo que mantenho, o que você conhece, com seu jeito calado e seu olhar assertivo, a julgar-me os atos. Foi surgindo o grupo da faculdade, um a um, a menina que se escondera por um ano e depois se revelara íntima, a que se sentava sempre à janela absorvida em pensamentos externos, o professor que teimou em imiscuir-se entre nós, para a nossa sorte. Antigos amores também deram as caras, charmosos e elegantes, e também meus irmãos. Um a um, foram despontando todos eles, meus amigos cotidianos. Sim, você os conhece todos e de tempos em tempos os visita. Eles são os seus companheiros. E, naquele instante, valiam-se de cadeiras e histórias, tomavam emprestadas rugas e risos, anedotas novas, lembranças velhas e olhares inapreensíveis, meus ou do velho, e construíam assim uma cena do meu futuro.
Eles são os seus companheiros e também os meus. Não é isso que tenho a negar nesta carta, acredite. Apenas pude perceber, enquanto aguardava que a garçonete me trouxesse a conta, que é preciso construir esse futuro, que eu preciso adquirir aquelas rugas, que preciso lutar para me tornar o velho aniversariante. Que se, aos setenta anos, quero receber com tranqüilidade aqueles meus amigos, se quero ouvir e me deleitar com suas histórias, comover-me com a nostalgia sem que me abata nenhuma angústia, tenho que deixar que eles criem suas histórias e sua nostalgia, e tenho que criar as minhas. Devo afastar-me deles, sim, desses seus companheiros, para construir minha própria história.
Quando me levantei para deixar o restaurante, quando cruzei pelas costas daqueles que quase não se desfaziam dos rostos de meus amigos, era eu que continha o ímpeto de cumprimentá-los com efusão. Queria me despedir, sentia que era meu dever, mas não me permiti arcar com a insensatez da situação. O olhar do velho perscrutou meu caminho e quando me virei para fitá-lo, pela última vez antes de começar a dedicar-me por inteiro a assumir aquele olhar, senti sua aprovação. E eu precisava dela, sim, precisava de alguém que me assegurasse que isto que faço me convém.
Você há de dizer que não havia aprovação, que eu a inventava como tudo neste episódio parece inventado. Pode ter razão, mas não importa. Naquele olhar, não era o velho desconhecido quem me aprovava. Naquele olhar, havia a aprovação de todo um mundo, de todos os que alguma vez sentiram que tinham um futuro a construir, um futuro que dotasse de identidade um menino desterrado e também a você e a esse que recém almoçava sozinho na Recoleta. Naquele olhar, havia a aprovação de todos os meus verdadeiros amigos, os que estarão nesse almoço, todos os meus professores, os meus pais e os pais de meus pais, que não são estes pendurados na parede, e sim os que encontram sutis meios de me alcançar por palavras e anedotas transmitidas. E eu precisava daquela última aprovação, sim, para poder agora tentar me aprovar.
Caminhei de volta ao apartamento e, sob o olhar inane dos retratos, nada pude fazer senão escrever esta insensata carta. Você me entende? Você entende, agora, o propósito desta carta? Entende que não voltarei mais, ou ao menos que não voltarei até que reconheça em mim as rugas daquele senhor com quem simultaneamente brindei ao passado e ao futuro? Entende que viverei em Buenos Aires?
Creio que sim. E creio que pouco resta a dizer, ou até que já disse demais. Permito-me o direito de desejar que estejam todos lá, nesse meu almoço que não há de ser na Recoleta, e sim em algum restaurante paulistano que empreste suas mesas à celebração do retorno de um emigrado. Tenho a certeza de que você estará lá comigo, preso ao meu corpo, tendo constituído, sim, ao menos algumas dessas futuras rugas. Não o desprezo, acredite. Conheço seu valor. Sei que tive de passar por você para tornar-me quem acabei de ser naquele almoço, quem sou em Buenos Aires. Mas não posso arcar com o peso de voltar a ser você, e por isso envio esta carta para a sua casa, que foi a minha própria casa, e cuja caixa de correio não quero nunca chegar a abrir. Entende o propósito desta carta? Espero que entenda. Espero que não se ofenda. Será bom, ao menos, que eu não me ofenda. Fica um abraço desses habituais de fim de carta, coroando a insensatez perceptível e necessária disto tudo.
Rodrigo.