Um dia terá que confessar. Contar tudo a ela. Desconcertada, ela tenta acalmá-lo. Abraça-o, beija-o, aninha-o. Não sabe que na raiz do estremecimento dele está certa “síndrome de placas tectônicas”. Tenebroso tremor dos umbrais, capaz de empalidecer a carne, amarelar os heróis de Almodóvar; credor desta leviana licença poética. Placas, o quê? Comovida, ela tenta se aproximar, pergunta que “visões” são aquelas. Não entende o extremismo dele, o salto para fora da cama. Depois brinca: vai ver, é encosto de vidas passadas… E sempre acontece em pleno êxtase. Mas só em apartamentos. Quanto mais alto o prédio, mais pavorosa a vertigem. Será rejeição? Sentindo-se culpada, ela ecoa, testa seu próprio hálito com a palma da mão aberta em concha, à frente da boca — hálito que continua perfumado como todo seu corpo; quente, aconchegante. Ele a consola: nada a ver contigo, querida. E ela o recompensa, diz que ele foi “maravilhoso” (mal sabe ela daquele vaivém!). Mas então, o que é? Vendo-o agora, pálido, estático, debaixo do caixilho da porta do quarto, lhe recomenda, já aflita, um telefonema para o terapeuta — e ele ali com a expressão dos possessos, carranca de Kaspar Hauser, os pés milimetricamente retraídos à soleira, a cabeça cuidadosamente protegida pelo vão; olhos esbugalhados fixando a janela!
Mergulhado em silêncio indecifrável, ele recolhe os fragmentos, encaixa os estilhaços, acomoda as sensações de sua carne estremecida, para tornar plausível aquele episódio inenarrável. Que na verdade dispensa terapeuta. Este, apenas irá divertir-se às suas custas, cobrar-lhe honorários por seus risinhos pudicos — que definhe em sua angústia lacaniana!
Então refaz a viagem, desabafa seu trauma, e ela ouve com os olhos colados nos lábios dele. Desembaraçado do controle de passaportes, arrastando a mala, e buquê de flores em punho, alcançara o portão de chegada. Com muita apreensão. E naquele átimo que o separava do desejado abraço com ela, a “ex” (expressão que, verdade seja dita, soa sórdida, lembra veredicto de execução sumária), na tela da memória espocara a seqüência descontrolada daquele filme: fazia vinte e três anos que tinha levantado vôo de Santiago. Coração latejando na boca, pulmão esbraseado: em poucas horas estariam em seu encalço, atrás das trinta latas de filme não revelado em sua bagagem. Imagens proibidas sobre a resistência contra o tirano. Filmadas à sorrelfa, driblando a mais feroz das ditaduras. Aquela espera pelo embarque, vinte e cinco anos atrás, fora das mais excruciantes em sua vida. Por isso esperara enfrentar-se com seus fantasmas, já acompanhado, cingido pela proteção dela.
Mas, que droga, onde ela se metera? O coração outra vez disparado. Daquela vez alvoroçado, agora, machucado: um dia inteiro em viagem, de escala em escala, de país em país — e ela não viera recebê-lo! De repente lembrou-se de que ela era reincidente: já o tinha feito esperar hora e meia num bar, no Brasil. Sentiu nas estranhas um pequeno terremoto. Jogou as flores de ponta-cabeça numa lata de lixo e informou-se sobre os vôos de regresso ao Brasil. Para aquela mesma noite? Ninguno, señor. Reservara um hotel por telefone e sentou-se para fumar um cigarro, já fazendo planos.
Surgindo do nada, vestida de preto e aflita, ela irrompera no grande saguão. Já tinha perdido o bronzeado da Ilha do Mel, mas estava esbelta. Mantendo-se encoberto pela multidão, ele acompanhara os olhares desesperados dela à procura do seu. Mas vingara-se, deixara-a sofrer. Só quando, já resignada, ela se preparara para fazer um telefonema, ele a chamara. E ali mesmo tiveram seu primeiro bate-boca. Tinha tomado o caminho errado para o aeroporto, ela mentiu, invertendo os papéis — mas, diabos! quem, ali, era o estrangeiro desnorteado? Não me fales assim, sou pessoa pública, ela aprumou-se — e ele pensara que tinha desembarcado no aeroporto errado. Subiram ao carro dela. Na verdade ela se atrasara na casa de uma amiga (informação da mãe no primeiro telefone dele). Ele fumou mais dois cigarros com raiva e disparou: quem ama chega adiantado ao aeroporto! (riu-se às escondidas, era frase com sonoridade de aforismo). No meio da estrada pediu para parar. Ela resistira, chorara. Mas ele engolira duas lágrimas secas para não vacilar, e seguira de táxi. Naquela primeira noite se instalara num hotel. E ela lhe ligara dezessete vezes.
Domingo, céu de brigadeiro, chamejando com as cores da reconciliação, comeram um asado na casa do futuro sogro. Beberam vinho das boas cepas do Valle Central. Falaram muito, contaram piadas, buscaram alguma afinidade. Ela o apresentara como compañero, mas evitaram o passado; a prisão, as torturas, o exílio do pai e antigo colaborador do presidente caído em combate no Palácio da Moneda. Estranhamente, no brilho dos objetos e nas frestas entre as palavras ele percebera a acomodação de um deslumbramento; inicialmente algo insondável, e depois mais e mais desvelado. Dinheiro. E enquanto ela cumpria seu protocolo de vereadora da capital do país, ele reencontrava-se com Santiago, a néscia, apressada, sufocada por chumbo e fumaça; a Cordilheira sangrando a neve com lágrimas de fuligem.
Quando ela finalmente se desvencilhara do cerimonial, escaparam para o norte, via Panamericana, onde os nativos parecem imitar os suíços, em obsessivo aproveitamento de cada nesga dos minúsculos vales férteis. Embrenharam-se no Valle del Elqui e encharcaram-se de pisco. Instalaram-se em Puerto Velero, recortado por azul veludínio. Fartaram-se de polvos, lulas e peixes sirênicos, das águas profundas. Amaram-se na banheira muito pequena para aquela luxúria sem tamanho, deitando água na sala, inundando a casa. A foto perfeita: ela ria de braços abertos, quando ele urrou, mergulhando nas águas geladas daquele mar do poente. E sentados na praia, na última noite tentaram socorrer-se de seus abalos sísmicos, contando as estrelas do poeta de Isla Negra, ancoradas sob o céu do Pacífico.
E então sobreviera aquele dia mal-nascido. Até a hora do almoço o país assistira atônito à domesticação da hiena, à investidura do ditador sanguinário no cargo de senador da República. Honraria vitalícia em desonra da Nação. O povo saíra às ruas. Calígula protegido pela guarda pretoriana: cerco, ameaças, soldados com os olhos colados na mira das armas. !Váyanse todos! Indignação e asco, palavras e pedras. No meio da fúria, as mãos dele e dela perderam o toque. Reencontraram-se no apartamento dela, noite já alta.
Famélicos, deitaram-se e enrolaram-se na cortina de tisne que escondia a cidade. E quando seus corpos alagados já se confundiam, a cama começara a mover-se. Um misterioso ritmo, que não era deles, infiltrara-se. Agarrado ao silêncio, ele estancara seu movimento, e ela se enfurecera. Nela nenhum espasmo, nele apenas respiração contida. Fechara os olhos, creditando a estranha sensação à reverberação do dia já consumido. Subitamente sentira mais que um tranco — era balanço. Olhara para a mulher a seu lado, com a expressão do prazer interrompido nos lábios: como é que te moves, se eu não te toco? Mas quando erguera o olhar, pensou ver a cordilheira atravessando a janela, feito pêndulo. Não acreditou! Em pânico, acotovelara a mulher, já adormecida: o prédio treme! Espreguiçando-se, ela desdenhara com desprezo mais que indolente: es apenas un temblorzito, mi amor!… Terremoto?! No, !temblorrr!
Insultado pela escala Richter, cujas nuanças lhe pareciam cínicas, ele saltou da cama, bateu de frente com o guarda-roupa, reincorporando-se sem saber para onde correr. Ela instruiu-o desde a cama abandonada: não seja idiota! Mas já que você quer se salvar, o único lugar recomendado pelos sismólogos é o caixilho da porta. E enquanto refletia sobre a piada (de hilariante realismo), imaginando-se despencar do décimo quinto andar, emoldurado por uma porta que não o salvaria da desdita, no alto do 15º andar daquele prédio do bairro de Providencia, a cordilheira saudava sua carne trêmula com imperturbável vaivém diante da janela.