Tradução: Ronaldo Cagiano
A morte de bicicleta
o aço cravado nas costas
uma manhã em duas rodas
uma manhã
mão assassina
duas rodas mudam de dono
essa manhã
punhal erguido
luto na fábrica
seus companheiros
…
Balas perdidas
no campo de batalha
não é prudente
levar luz delatora
como evitá-lo
expor-se
é condição necessária
osso sobre osso
perfilam-se
ardis
condenados ao fracasso
o ruído das armas
oferece seu engano
ao melhor impostor
…
Rayuelas
tua presença me devolve
à rua da infância
tomo distância de meus negócios
e volto a traçar a amarelinha
recuperar pipas
evoco cavaleiros vencedores
acho onde guarnecer-me
nestas horas
de névoa e areia
a tua boca pequena
a confio ao riso
…
Urbano
através da janela do trem
vejo minha sombra avançar sobre cascalhos
tocos de cigarros
papéis enrugados sob a pálida luz do sol
minha sombra avançando sobre as coisas
ou sobre restos delas
sobrevoando ao abandono
governada por uma alteridade que se descuida
de propósitos e intenções
penso
como se tratasse de semelhanças
um pouco também assim
minha própria carnalidade
sobrevoa o mundo sem tocá-lo
desatenção
dir-se-ia
descuido que
útil para não confrontar
não logra enganar-me de todo
porque é a hora
precisamente
enquanto vejo avançar minha sombra
quando me detenho a examinar
implicâncias e controvérsias
disputas
entre o mundo e minha pessoa
…
Ecos do entardecer
a doença e o remédio
conspiram e se embriagam
nas ruas da cidade
em uma praça
as flores
digerem as últimas cinzas
cães vagabundos
se despedem da sede
há no ar um tambor desesperado
não é a paisagem
o que lastima
não
mas sim o despropósito de uma jogada
como lamento que chega a extemporâneo
…
Como se
às seis da tarde
a cidade chega ao seu clímax
milhares de pernas vão e vêm
mendigando um coração desnudo
ou um pedaço de Deus
sentado na mesma mesa de um bar
busco um sinal oculto na tarde
uma língua que fale
o idioma da luz
o olhar vaga na penumbra de mais outra tarde
saber ser margem e suportá-la
provocar a eficácia de uma ponte
cada mesa de bar tem o rosto da cidade que a contém
como a ferida
a marca do corte
um gole de café
o olhar na mão oposta
os olhos perdidos nesse olhar
a mão bebendo só um café frio
que vá este idioma
incapaz de acertar
com a pergunta adequada
sequer a escuridão com que iluminar
um nó na garganta
eu tampouco tenho a mão
a chave de nenhuma porta
não quero ser juiz nem parte
tampouco
claro
busco ficar a salvo
como poderia?
quisera
sim
terminar este café
e fazer de conta que não estive lá