O réveillon de Revelysson
Revelysson não estava bem naquela noite.
— Tou é piorado hoje… as porcaria que a gente come… — gemeu.
A mãe trouxera as crias para a periferia da grande cidade semanas antes. Moravam em um barraco encontrado abandonado. A mãe disse:
— Vai tê festa hoje dinoite no clube, Sonzin. Vô vê se ganho uns trocado lá, viu?
Sonzin tinha outra idéia: a rua das casas grandes com jardins e varandas. Passava pela rua todo dia e sonhava entrar em uma das casas, a de varanda maior. O povo da casa deve ir pra festa, essa a idéia.
Sonzin beirou o muro. Esperou os carros passarem apressados até não passarem mais. Esperou a noite acalmar a natureza, desligar os sons e apagar suas luzes. Então, saltou o muro, galgou a varanda e entrou na casa.
Fazia frio lá dentro. Era uma sala grande que deixava escapar, aqui e ali, brilhos fugazes das paredes e objetos até os olhos de Sonzin. Sofás e jarros. Quadros e janelas. Sonzin não estava bem. Mesmo assim andou por entre eles, em tudo reparando, em busca de tesouros.
Foi então que a fuzilaria começou. Um tiroteio ensurdecedor que clareava a sala em jatos de luz e cor. Apavorado, Sonzin correu para a varanda, saltou para o jardim, escalou o muro e caiu no mundo, deixando atrás de si, desde a sala, um rastro de merda.
Felícia
Jogou a mochila nas costas e partiu sem deixar bilhete. Amava e fora cruelmente traída. Outra coisa não podia fazer senão partir. Então, saiu de casa em um meio de tarde luminoso. Não procurava respostas na próxima esquina. Nem deixava aos pais um sopro que revelasse pista de sua dor. Sua irmã anunciara o casamento na noite anterior. Noite longa, que lhe pesou toneladas na alma turva. Bebeu todo amargor do silêncio dela e o veneno de seu olhar risonho. Morrera e matara mil vezes até o dia amanhecer, frio e indiferente. Ao bater a porta, instantes atrás, lembrou-se de ter lido em Proust que “para sofrer verdadeiramente por uma mulher, cumpre haver acreditado completamente nela”. Acreditara na irmã. Não ficaria para o casamento, não podia ficar. Logo seria noite.
O pensador
O que pensa esse homem, sentado em uma cadeira no playground do prédio desde as 11 da noite até agora, 3 da manhã, inquieto, a trocar constantemente de posição enquanto ajeita o cabelo, esfrega a barba, engole saliva e espera, sem tugir nem mugir, que, vindo do seu apartamento, atravesse aquele mesmo playground e parta, o homem que desde antes de ele chegar ao prédio ocupa o seu lugar na mesa, no sofá e na cama, ao lado e dentro de sua mulher?