Canal 80

Um conto de Marcio Renato dos Santos
Marcio Renato dos Santos, autor de “Minda-au”
01/09/2003

Durante um período de minha vida tive um único objetivo. A atividade profissional era apenas um meio de ganhar algum dinheiro e desperdiçar muitas horas. O relacionamento amoroso também era um gasto, de horário e de grana, de grana e de horário — dependendo do momento. Os demais compromissos, os fisiológicos até, representavam, necessariamente, um atraso para o momento em que eu entrava em sintonia.

Happy hour, pra mim, era chegar e, sobretudo, permanecer sozinho no apartamento em que eu vivia. Primeira precaução: fechar as persianas. Alguém, em alguma janela do prédio vizinho, poderia estar, não apenas olhando, mas me filmando.

Circular sem roupa pelos cômodos, mais do que normal, era obrigatório. Me proporcionava imensa sensação de liberdade. Nu, não estava mais vinculado à tirania da indústria do vestuário. Sem espectadores, também não me sentia julgado. Minhas sobras de gordura não gerariam comentários. E ficar assim representava o regresso a um dos hábitos dos mais primitivos habitantes da região.

Naquele universo, com o qual me sintonizava, os seres, inevitavelmente, ficavam nus. Mas a ausência de roupas não era o que mais me atraía no então novo e fascinante mundo. Aqueles seres pareciam não ter problemas. Apenas se relacionavam. Sem dramas nem divergências. Nenhuma contestação. Nenhuma dúvida. Quase sem palavras, cada um demonstrando saber exatamente seu papel.

Era num mundo como aquele que eu desejava viver.

Além das oito horas diárias obrigatórias, não havia nenhum outro motivo pra sair. Qualquer tipo de evento passou a significar incômodo. Até mesmo encontros com pessoas anteriormente consideradas agradáveis não me interessavam mais. O namoro teria seu fim em seguida.

E durante um tempo me senti extremamente feliz sendo apenas um contemplador solitário.

Estava me tornando um especialista no assunto, do ponto de vista visual, até que, de repente, me cansei. As relações apresentadas naquele universo eram similares às da realidade mais próxima. Seres dissimulados com suas expressões faciais contradizendo o que se vivenciava, ação desmascarando discurso, essas estratégias de sobrevivência da civilização.

Cancelei o sinal da programação. Mas o desligamento não foi imediato. A empresa concedeu alguns dias de cortesia. E por mais que eu desejasse sair, lá estava eu diante da tela.

Até que o sinal foi desativado.

Não posso dizer com certeza há quanto tempo isso aconteceu. E também não faz muita diferença se foi há dois anos ou seis meses. O que importa é que ninguém, absolutamente nenhuma pessoa, sabe desse detalhe em minha vida.

É segredo.

Hoje estou casado, vivo bem com minha esposa e nossos dois filhos — um acabou de nascer e o outro já está na escola. O conforto em minha casa corresponde à melhoria de minha empresa. E tenho tempo pra fazer o que mais gosto, que é não fazer nada.

Ainda sinto necessidade de rever aquelas produções. Em casa não dá mais. Então, não necessariamente todo dia, mas, em geral, depois de almoçar num vegetariano do centro, entro numa dessas cabines de peep show.

Acho que um dia isso vai passar.

Passa sim.

Mas, por enquanto, lá vou eu.

Já estou atrasado.

Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho