Caminhos de Natal

Conto de José Oliveira
Ilustração: Marco Jacobsen
01/06/2006

Um homem trepava o velho empedrado cansado e gasto. Buscava a primeira encosta de monte.

Artur, de rosto ruborizado, ao vê-lo do seu terreiro sobranceiro ao caminho, pára a sua lide com a lenha. Repousa uma das mãos sobre o cabo do machado e começa a medir-lhe os intentos, ao mesmo tempo que, com outra, confirma o boné na cabeça.

— Ei, Quim!

Distraído pelo tilintar de picos de toda a sorte e tamanho enfileirados com martelos num balde, Quim continuava o seu curso alheio às vidas que, como sombras de árvores, se vergavam sobre seu trilho.

— Ei, Quim! Inda vais ganhar pró bacalhau hoje? — e reforçou, encarando-o com ar satisfeito — Olha que hoje é dia pra estar ó lume, num é dia de trabalho.

— É. Até logo!

Dia de Natal. E como em tantos natais, a aldeia era a harmonia na sua meninice: horizontes fechados, em mistério, por neblinas, fazendo-a voltar-se para si própria; fumos agarrados aos telhados o dia inteiro, evaporando suores de sua própria vida; corpos de mulheres estendendo-se, sorridentes, pelos campos com cestos de erva à cabeça; troncos de carvalho e oliveira rendidos perante a força de braço de homens sem idade e a alegria da criançada debruçada sobre potes de formigos e aletria ainda a fervilharem nas lareiras.

Tal como toda a aldeia, ambos retomaram seu horizonte como quem se deixa levar por instintos ancestrais. Artur encosta o machado aos joelhos, cospe a mão direita, a esquerda e espalha, entre os dedos, salpicos de ânimo; ergue o machado até ao seu aprumo máximo e desprende-o certeiro como um raio sobre mais uma metade de tronco.

— Tónio, ó António, traz o carrinho de mão e leva-me a lenha pra casa que a noite num tarda! — pedia ao seu mais novo que sacudira um olhar para fora de porta.

— Tá bem pai. Só vou acabar este desenho — desdobra um velho papel de mercearia para o pai e dirigindo-lhe um olhar condoído — É só um bocadinho!

— Já sabes. É pra ti, pá.

Instantes depois, António, com a alegria própria dos seus doze anos, chega com o carrinho de mão e começa a enchê-lo de lenha.

— Pai, que anda a fazer o Se Joaquim?

— Ah, cá pra mim, anda a preparar dois esteios pró Se João da Ribeira.

— Sabe, outro dia, quando andava co gado, vi-o a falar prás pedras e dizia quase a cantar: “anda cá lindinha que tu és minha”!

— É o que ele tem. E um home tem de se agarrar ó que tem, senão num vive.

Sem demora, António empilhou aquela carga e regressa ainda mais espicaçado pela curiosidade.

— E ele num tem família?

— Tem uma irmã!

— Mas eu nunca a vi aqui?

— Olha, porque é casada, tem filhos e tá na França.

— Por que é que num casou, pai. Era feio?

— Não. Olha, veio de uma guerra que houve há muito tempo, da Índia, e depois foi prá França. Levou a mãe que tava praí sozinha, mas um dia, quando chegou do trabalho, encontrou-a morta. Tinha sido atropelada, assim, à porta de casa.

— Foi quando veio pra cá?

— É. Mas fugido porque matou quem lhe tirou a mãe. — João fica cabisbaixo — Bá, leva esse carrinho que depois conto-te o resto. — e o petiz voltou a regressar com toda a sua prontidão.

— Sabes, tu um dia vais perceber isto, um home quando mata tamém morre porque percebe que acabou de marcar caminho có morte. É por isso que ele anda praí desleixado, bêbado e sempre de cigarro na boca. Se calhar quer que o vinho, os cigarros ou a porra o matem depressa.

— Coitado! E o Natal ? Onde o vai passar?

— Como passa todos os dias. Fica praí a trabalhar até tarde, não ouves as marteladas, e depois vai pra casa; bebe uma aguardente e deita-se.

António reservou-se para o silêncio. Sentou-se no meio muro que rodopiava sobre o terreiro e, voltado para o caminho, escutava atento aquele dialogar férreo de Joaquim com a pedra como quem escuta a voz da neblina.

A escuridão arava seu próprio semblante e António definhava o tempo, ralando, com os seus deditos distraídos, o musgo arrancado da parede. Já Artur havia recebido ordens da mulher para chamar o rapaz, mas ao vê-lo, assim, voltado para o caminho, entendeu-o.

— Deixa mulher. Ele vem já.

O batucar de picos e martelos terminou. Instantes depois, Joaquim descia, escondido pela escuridão, aquela sábia calçada.

— Ó Se Joaquim, inda vai agora?

— É. E tu num vais pra dentro? — disse baixo e sem parar o velho pedreiro, continuando a fuga de si próprio.

— Tava à sua espera.

Joaquim parou e elevou os olhos para o garoto.

— Este frio faz-te mal, foge pró lume.

— Tenho pra si isto. É o meu carrinho de bois.

— E tu é que o fizeste?

— Fui, cum tempo. O meu avô ensinou-me. Tem tudo como se fosse de verdade: rodas no eixo, pigarro, fogueiros de lenha e umas caniças pra pôr.

— E tu vais-me dar o que deu tanto trabalho?

— Vou! Eu tenho tempo. Adiante, faço outro pra mim.

Joaquim libertou-se do balde por instantes. Recolheu a oferta. Soltou um sorriso escondido.

— Sabes que é a minha primeira prenda de Natal?!

Agarrou o balde com a mão esquerda e desceu oferecendo, com a outra, aquele brilho de criança à noite.

José Oliveira

Nasceu na França, em 1969, mas, desde os sete anos, mora em Povoa de Lanhoso, Portugal. Seu primeiro livro, Rumos, sobre as experiências da imigração, foi publicado em 2004.

Rascunho