Um homem trepava o velho empedrado cansado e gasto. Buscava a primeira encosta de monte.
Artur, de rosto ruborizado, ao vê-lo do seu terreiro sobranceiro ao caminho, pára a sua lide com a lenha. Repousa uma das mãos sobre o cabo do machado e começa a medir-lhe os intentos, ao mesmo tempo que, com outra, confirma o boné na cabeça.
— Ei, Quim!
Distraído pelo tilintar de picos de toda a sorte e tamanho enfileirados com martelos num balde, Quim continuava o seu curso alheio às vidas que, como sombras de árvores, se vergavam sobre seu trilho.
— Ei, Quim! Inda vais ganhar pró bacalhau hoje? — e reforçou, encarando-o com ar satisfeito — Olha que hoje é dia pra estar ó lume, num é dia de trabalho.
— É. Até logo!
Dia de Natal. E como em tantos natais, a aldeia era a harmonia na sua meninice: horizontes fechados, em mistério, por neblinas, fazendo-a voltar-se para si própria; fumos agarrados aos telhados o dia inteiro, evaporando suores de sua própria vida; corpos de mulheres estendendo-se, sorridentes, pelos campos com cestos de erva à cabeça; troncos de carvalho e oliveira rendidos perante a força de braço de homens sem idade e a alegria da criançada debruçada sobre potes de formigos e aletria ainda a fervilharem nas lareiras.
Tal como toda a aldeia, ambos retomaram seu horizonte como quem se deixa levar por instintos ancestrais. Artur encosta o machado aos joelhos, cospe a mão direita, a esquerda e espalha, entre os dedos, salpicos de ânimo; ergue o machado até ao seu aprumo máximo e desprende-o certeiro como um raio sobre mais uma metade de tronco.
— Tónio, ó António, traz o carrinho de mão e leva-me a lenha pra casa que a noite num tarda! — pedia ao seu mais novo que sacudira um olhar para fora de porta.
— Tá bem pai. Só vou acabar este desenho — desdobra um velho papel de mercearia para o pai e dirigindo-lhe um olhar condoído — É só um bocadinho!
— Já sabes. É pra ti, pá.
Instantes depois, António, com a alegria própria dos seus doze anos, chega com o carrinho de mão e começa a enchê-lo de lenha.
— Pai, que anda a fazer o Se Joaquim?
— Ah, cá pra mim, anda a preparar dois esteios pró Se João da Ribeira.
— Sabe, outro dia, quando andava co gado, vi-o a falar prás pedras e dizia quase a cantar: “anda cá lindinha que tu és minha”!
— É o que ele tem. E um home tem de se agarrar ó que tem, senão num vive.
Sem demora, António empilhou aquela carga e regressa ainda mais espicaçado pela curiosidade.
— E ele num tem família?
— Tem uma irmã!
— Mas eu nunca a vi aqui?
— Olha, porque é casada, tem filhos e tá na França.
— Por que é que num casou, pai. Era feio?
— Não. Olha, veio de uma guerra que houve há muito tempo, da Índia, e depois foi prá França. Levou a mãe que tava praí sozinha, mas um dia, quando chegou do trabalho, encontrou-a morta. Tinha sido atropelada, assim, à porta de casa.
— Foi quando veio pra cá?
— É. Mas fugido porque matou quem lhe tirou a mãe. — João fica cabisbaixo — Bá, leva esse carrinho que depois conto-te o resto. — e o petiz voltou a regressar com toda a sua prontidão.
— Sabes, tu um dia vais perceber isto, um home quando mata tamém morre porque percebe que acabou de marcar caminho có morte. É por isso que ele anda praí desleixado, bêbado e sempre de cigarro na boca. Se calhar quer que o vinho, os cigarros ou a porra o matem depressa.
— Coitado! E o Natal ? Onde o vai passar?
— Como passa todos os dias. Fica praí a trabalhar até tarde, não ouves as marteladas, e depois vai pra casa; bebe uma aguardente e deita-se.
António reservou-se para o silêncio. Sentou-se no meio muro que rodopiava sobre o terreiro e, voltado para o caminho, escutava atento aquele dialogar férreo de Joaquim com a pedra como quem escuta a voz da neblina.
A escuridão arava seu próprio semblante e António definhava o tempo, ralando, com os seus deditos distraídos, o musgo arrancado da parede. Já Artur havia recebido ordens da mulher para chamar o rapaz, mas ao vê-lo, assim, voltado para o caminho, entendeu-o.
— Deixa mulher. Ele vem já.
O batucar de picos e martelos terminou. Instantes depois, Joaquim descia, escondido pela escuridão, aquela sábia calçada.
— Ó Se Joaquim, inda vai agora?
— É. E tu num vais pra dentro? — disse baixo e sem parar o velho pedreiro, continuando a fuga de si próprio.
— Tava à sua espera.
Joaquim parou e elevou os olhos para o garoto.
— Este frio faz-te mal, foge pró lume.
— Tenho pra si isto. É o meu carrinho de bois.
— E tu é que o fizeste?
— Fui, cum tempo. O meu avô ensinou-me. Tem tudo como se fosse de verdade: rodas no eixo, pigarro, fogueiros de lenha e umas caniças pra pôr.
— E tu vais-me dar o que deu tanto trabalho?
— Vou! Eu tenho tempo. Adiante, faço outro pra mim.
Joaquim libertou-se do balde por instantes. Recolheu a oferta. Soltou um sorriso escondido.
— Sabes que é a minha primeira prenda de Natal?!
Agarrou o balde com a mão esquerda e desceu oferecendo, com a outra, aquele brilho de criança à noite.