Peabiru era olhar pela janela e ver campos, poeira e roceiros, o horizonte que podia quase ser tocado de tão perto, ficava ali, logo ali, no comecinho da estrada.
Peabiru era o corpo nu entrevisto pelas frestas generosas das casas de madeira, sempre meio tortas, meio podres, revelando o que devia ser ocultado.
Peabiru era moças de calcanhares rachados que vinham descalças dos sítios e lavavam os pés na torneira do quintal de casa, a primeira na entrada da cidade, e depois colocavam sandálias encardidas, mostrando-nos pernas luzidias.
Peabiru era tocaias misteriosas cujos assassinos todos conheciam, tratores e gado roubados e revendidos em oficinas e fazendas famosas, o convívio de pobres e ricos, mocinhos e bandidos.
Peabiru era as cerealistas, os saqueiros, os caminhões carregados, um cheiro de grão podre por todo canto, mas também era o riso do Ditão, que enriqueceu comprando cereais, gostou tudo com bebida e mulheres para morrer de enfarto, pobre e sujo, andando de bicicleta no centro de uma cidade que já não o reconhecia.
Peabiru era calçar conga na escola, mas os pés descalços correndo num esburacado campinho de terra atrás de uma bola meio murcha, os dedos invariavelmente com as unhas inflamadas.
Peabiru era as noites sob os postes de iluminação pública, histórias de bandoleiros e fantasmas que percorriam a rua, os amigos reunidos em torno desta luz elétrica e depois dispersos para, em casa, lavar os pés e dormir antes do Jornal Nacional.
Peabiru era meninas em flor, paixões nunca confessadas, tristeza de tímidos em busca do pó de bico de anu, que jogaríamos sobre elas para tê-las entregues em nossos braços de penugem eriçada.
Peabiru era também a fanfarra de Sete de Setembro, ordem, muita ordem, quase nenhum progresso, o bicho de pé ardendo num dedo espremido pelo sapato reformado enquanto marchávamos – depois o gosto de ficar descalço e coçar amorosamente a velha moranga, o mais ardente dos prazeres.
Peabiru era acordar com pássaros, caçá-los sem dó para depois comer saborosas passarinhadas, era colher goiabas verdes, as maduras, que merda!, sempre bichadas, tomar banho no Rio da Várzea, deitar nas suas margens e secar ao sol, nus.
Peabiru era nosso corpo adolescido, uma doença de hormônios e gemidos, os domingos de manhã na aula de catequese no prédio da igreja, a imagem de Cristo morto, santos tristes e aquele burburinho de jovens sonhando corpos alheios.
Peabiru era a população pequena, bem pequena, a morte dos amigos insubstituíveis que estavam ontem mesmo conosco e que agora, no caixão florido, parecem distantes, tão distantes.
Peabiru, Peabiru era.