A menina brinca no tapete, parecendo nem ouvir o telejornal mas, quando começa o intervalo, levanta a cabeça:
— Pai, que que é corrupção?
O pai e a mãe se olham, o pai suspira e diz bem, corrupção…
— …não é coisa pra gente da sua idade, né.
Claro que é, diz a mãe:
— Responde direito, que se a criança pergunta, é porque quer resposta.
Bem, pigarreia ele, corrupção é…
— …por exemplo roubar dinheiro do governo, que é dinheiro de todo mundo.
— E como é que a corrupção rouba dinheiro do governo?
O pai explica que quem rouba não é a corrupção, é o corrupto, é alguém, ou melhor, é muita gente que rouba o governo:
— Por exemplo o funcionário que desvia dinheiro do governo. Ou o deputado que vende o voto dele lá no Congresso. Ou o juiz que emprega parentes nos gabinetes de outros juizes, em troca de empregar parentes deles. Ou o empresário que paga para ganhar concorrência das obras do governo. Ih, filha, tem tanto jeito de roubar o governo, não é, mulher?
— É, e o seu pai também rouba o que pode quando faz declaração de imposto de renda.
Volta o telejornal e a menina volta a brincar, eles voltam a ver as notícias. Novo intervalo, ela de novo ergue a cabeça:
— Por que o dólar sempre sobe e o real sempre cai?
O pai suspira fundo, e com voz monótona compara os Estados Unidos e o Brasil, as diferenças de colonização, Inglaterra e Portugal, e as diferenças geográficas, climáticas, culturais, mas a mãe diz que não é por nada disso:
— Acho que é porque eles são um povo menos corrupto, filha.
— Então o povo também é corrupto, mãe?
— E você acha que tinha tanta corrupção se o povo não fosse corrupto?
Você vai fundir a cabeça da menina, diz o pai:
— Isso não é conversa pra criança. E além disso, hem, cada pergunta!
— Por isso mesmo é preciso responder.
Volta o telejornal, e depois no intervalo a menina volta a perguntar:
— E o que que é impunidade?
— Essa eu mato fácil — o pai esfrega as mãos — Impunidade é quando você comete um crime e não é preso.
— E só tem tanta corrupção — emenda a mãe — porque tem muita impunidade, ninguém denuncia, entendeu?
Ela de novo volta a brincar, mas antes de mais um intervalo vai até diante da mãe:
— Então você acha que, pra acabar a corrupção, a gente tinha de contar que o pai rouba no imposto?
O pai pula da poltrona:
— Tá vendo?! Criança delatando pai só mesmo na Alemanha nazista! Eu falei que isso não era conversa boa! Mas você e sua educação moderna!…
Sai batendo a porta, a mãe solta longos suspiros.
— Que que eu falei de errado, mãe?
— Nada, filha, nada. Mas você faz cada pergunta!…