Boa Índole

Conto de André Giusti
01/12/2004

Uma única vez minha mãe pediu dinheiro na rua. Entalada de vergonha, comigo pela mão, eu que não tinha nem dez anos, foi para o meio da calçada em frente a um desses prédios modernos de escritórios, que naquela época ainda não tinham nome inglês. Na mão oposta à que me segurava, mostrava a conta de luz vencida, e para não tomar tempo daquela gente dizia apenas o que realmente importava: é que passo roupa pra fora, fiquei doente, perdi freguesa, com luz cortada não dá nem pra trabalhar.

Uns não davam nada e nem ouviam, muito menos paravam para saber; outros davam, mas não estavam nem aí, nervosamente cutucavam os bolsos achando ótima a oportunidade de se livrar daquelas moedas que vieram em um troco qualquer, e que incomodavam tanto quanto aquela mulher com o filho ao lado. Alguns até reduziam o passo para ouvir, mas antes que chegassem a parar, despachavam qualquer trocado e seguiam como quem houvesse deixado a consciência tranqüila. E teve aquele, todo pastinha, terno e sapatos bons, relógio melhor ainda, maleta com código secreto, mas principalmente uma expressão de quem sente cheiro de bosta por onde passa. Não ouviu nada do que a mãe disse, não deu nada do que por ventura tivesse em seus bolsos, e ainda saiu gritando indústria da esmola, trabalhar não quer e usa a criança, a vadia.

A conta a mãe pagou, como eu não me lembro. Eu estudei, tornei-me advogado requisitado, com clientela estabelecida, aqueles casos esporádicos de crioulo pobre que vira alguém na vida. Cheguei a dar entrevistas para aquelas reportagens hipócritas que falam sobre o assunto.

Nada além do acaso da oportunidade de um bom negócio, levou-me a comprar um conjunto de salas no mesmo prédio em cuja calçada minha mãe esmolara trinta e tantos anos antes. E por extensão da coincidência, o tal sujeito possui escritório no mesmo andar que o meu, duas ou três portas depois da minha, como se fosse a vida um plágio da ficção mais barata. Praticamente todos os dias, à hora do almoço, deparo com aquele rosto piorado pela velhice.

Conheço pessoas que não me negariam nenhuma espécie de favor, não importa qual fosse. Passam à sociedade a imagem de cidadãos de bem, ao mesmo tempo em que agem com desenvoltura no submundo. Como sabem que sei disso, não seria cômodo me recusarem ajuda. Assim como não acho cômodo ficar em débito com elas. Há também muitos que mexem com armas, e que por as arrumarem com relativa facilidade, vivem me oferecendo a preços vantajosos se comparados aos do mercado. Mas até hoje não me convenceram da necessidade de ter uma em casa. Ou aqui no escritório.

Não me lembro de ter deixado escapar alguma frase de sentido duvidoso, algo que disse em voz alta quando na verdade estava querendo que ficasse apenas para meus pensamentos. O que sei é que minha mãe de algum tempo para cá não se cansa de pedir que eu não faça nenhuma besteira, que pense nos filhos, na carreira, no nome conceituado, que lembre da boa índole da família, pobre, mas de bem. Procuro levar em conta o que ela diz toda vez que aquele velho passa por mim torcendo a cara, como se a humanidade inteira houvesse feito cocô na mesma hora em todas as calçadas do mundo.

André Giusti

Jornalista e escritor. Autor de Voando pela noite (até de manhã), A solidão do livro emprestado, e Eu nunca fecharei a porta da geladeira com o pé em Brasília.

Rascunho