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Confissões, considerações, observações que eu faria no meu blog, se caso tivesse um
01/11/2003

Confissão do adolescente de trinta e sete anos
Foram a televisão e o cinema que moldaram minha imaginação literária. Hoje tenho certeza disso. Primeiro a televisão, depois o cinema. Quando penso na minha infância, todas as narrativas de que me lembro dizem respeito aos filmes e seriados a que assisti na tevê. O primeiro texto d’O século oculto, meu livro de crônicas passionais, fala exatamente dessa influência avassaladora. Se me pedissem, seria capaz de encher duas laudas com o nome dos meus seriados prediletos (todos norte-americanos, é claro): Terra de gigantes, Viagem ao fundo do mar, Jornada nas estrelas, Perdidos no espaço, Batman, Daniel Boone, Tarzan, Rim-tim-tim, Zorro, Os três patetas… Não vou nem mencionar os desenhos animados, pra não deixar esse depoimento muito longo. Só falarei da paixão pelo cinema, que começou, é lógico, com as animações dos estúdios do Disney. A primeira vez que fui ao cinema eu devia ter dois anos, não mais do que isso, e minha mãe me levou pra ver Mogli. Pensando bem, este não é o caso que melhor exemplifica minha paixão pelos desenhos animados… Gostei muito de Mogli, mas, pelo que me recordo, só dos primeiros vinte minutos, porque depois fiz birra, chorei e sapateei pra ir embora. Minha mãe concordou a contragosto. Uma vez fora do cinema, fiz birra, chorei e sapateei porque queria voltar lá. Se não me engano levei umas palmadas nesse dia. De qualquer maneira, no tesão pela televisão e pelo cinema eu não me diferenciava de milhões de crianças brasileiras. Por volta dos oito ou nove anos eu descobri outra poderosa forma de se contar histórias, os quadrinhos. Virei viciado em pouco tempo. Viciado, mas sem grana pra manter o vício, o que às vezes me deixava meio angustiado, por não poder ter todos os gibis do mundo. Foi assim que me apercebi de que o mundo não se esforça pra fazer as crianças felizes. Melhor dizendo, foi assim que me dei conta dos limites impostos à classe média baixa, do seu baixo poder aquisitivo. Triste, triste, essa constatação.

Confissão número 2
Deve ter sido por volta de 1978. Leitura obrigatória do ginásio: Antes do baile verde, da Lygia Fagundes Telles. Não comprei o livro — não tinha o hábito de comprar livros —, peguei na biblioteca municipal. São Joaquim da Barra era a menor cidade da face da Terra, mesmo assim tinha uma biblioteca. Eu não a freqüentava muito porque minha literatura predileta, a dos gibis, também não freqüentava suas estantes. Levei muito tempo pra ler os vinte contos da Lygia. O mais antigo era de 49, o mais recente de 69. Levei muito tempo pra ler esses contos não porque fossem difíceis, mas porque fossem muito, muito estranhos. Delicados e estranhos. E assustadores, dois ou três. Por exemplo, A caçada. Esse conto narra a agonia de um sujeito obcecado por uma tapeçaria que reproduz uma cena de caçada. E essa obsessão leva o protagonista pra dentro da cena, transformando-o em seguida na caça alvejada. Outro conto esquisito: Os objetos, em que há um diálogo sublime, porém mórbido de um casal bastante excêntrico. Aliás, os diálogos da Lygia são perfeitos, suaves, sinuosos. Em A ceia são eles e só eles que enredam o leitor. Os contos de Antes do baile verde, mesmo quando tratam de algo tão banal como o relacionamento conjugal, trazem o verniz da estranheza. Por estranheza, estranho, quero dizer algo que não é nem grotesco nem insólito, algo que existe de fato na vida real, algo que pode ser detectado e medido por aparelhos sensíveis. Por exemplo, o tema d’A chave e d’O menino é trivial: essas duas narrativas falam da traição por parte da mulher. Mas fazem isso de um jeito que deixa o pêlo dos braços arrepiado. O moço do saxofone também trata da traição feminina, só que este conto enfia-se um pouco mais no bizarro: há anões e outras figuras circenses nele. E o mundo dessas criaturas é descrito com delicadeza, o que o torna mais bizarro ainda. Olhando de longe, penso que Antes do baile verde me agarrou ao demonstrar que o mórbido e o sublime estão por toda parte. Nas metrópoles e nas cidadezinhas do interior. Principalmente nestas. Depois desse livro, ao longo dos anos li quase tudo que a Lygia escreveu. Curti muito o Seminário dos ratos e A estrutura da bolha de sabão. Mas o vínculo que me prendeu ao primeiro livro que li, o vínculo do susto e da sedução pela estranheza, esse determinou minha vida futura e o que venho escrevendo até hoje.

Confissão número 3
Outra influência forte na minha adolescência foi a do Pasquim. Os livros do Millôr me mostraram as possibilidades do humor na literatura. Já os cartuns do Jaguar, do Ziraldo e principalmente do Henfil ampliaram meu horizonte, até então formado só do que a indústria cultural tinha a me oferecer nesse departamento. Quando Henfil criou o Baixim e o Cumprido eu não era nem nascido ainda. Nem podia imaginar que esse dois, mais a Graúna, o Zeferino e o bode Orelana, seriam fundamentais para a minha literatura. Foi na revista Alterosa, de Minas Gerais, que os dois apareceram pela primeira vez, isso em 1964 (se quiser conhecer a HQ de estréia visite o sítio do Henfil: http://www.henfil.hpg.ig.com.br). Mas em Minas, segundo o próprio cartunista, os fradinhos não pegaram. Só no Rio, muitos anos depois, com o Pasquim e o Jornal do Brasil, é que virariam paixão nacional. A revista Fradim, editada pela Codecri, circulou com várias interrupções, de 1971 a 1983. Foram 31 números. Eu a conheci lá por volta de 1980, época em que passei a ler tudo o que saía das oficinas da Codecri. Pra quem estava acostumado só com os assépticos gibis da Abril, o primeiro Fradim que me caiu nas mãos (o de número 8) foi o mesmo que uma parada cardíaca. Pela primeira vez a palavra iconoclasta, que eu nem conhecia ainda, fez sentido nos dicionários. O traço simples e genial, quase caligráfico, quase chinês, o humor negro, os baixos instintos e as situações politicamente incorretas, o famoso top-top… “Então isso é possível?”, babei. Eureca, era! Tratei logo de recuperar o tempo perdido: pedi na editora todos os números da revista. Só não me enviaram o número 1, que nessa altura estava esgotadíssimo. Hoje, só tenho a coleção completa porque o primeiro número foi relançado tempos depois. Não no formato tablóide original, mas no formato horizontal do resto da coleção: 20 x 30 cm.

O mal-estar e o ódio divinos
(Prefácio ao livro que infelizmente ainda não foi publicado)

A sociedade está em guerra. Não há escapatória pra nós, não há saída. De manhã, no jornal que acaba de chegar, ou no final da tarde, na tevê: seqüestros, assaltos, assassinatos. A classe média acuada, a justiça impotente, a polícia quase sempre conivente com os criminosos. Essa situação gera medo, raiva, falta de ar. E felizmente boa literatura. Não falo, claro, dos romances que banalizam e exploram o sexo e a violência. Falo de livros como O tolo precário, que não pertencem à categoria da literatura policial, pouquíssimo interessante, mas sim à da literatura sobre policiais. Diferente do que estamos acostumados, o mal-estar agora pode ser visto de dentro, das salas e dos corredores de uma delegacia. Mal-estar que não devia comprometer o trabalho das pessoas pagas pra combatê-lo. Pelo menos é assim que nós, cidadãos acomodados em nossa imobilidade, gostaríamos que fosse.

O ódio. É essa febre que perpassa o romance de Wilson Rossato. Preste bem atenção nos mínimos gestos, nos olhares oblíquos e dissimulados: estão carregados de ódio. Acompanhe com cuidado o diálogo entre Sete, o protagonista desta narrativa, e as vítimas que vão à delegacia dar queixa, pedir ajuda. É a raiva e o desejo de fazer justiça com as próprias mãos que movimentam os membros, as membranas, as cordas vocais desses infelizes. Raiva minada pela impotência, afinal todas as vítimas sabem que não há como fazer justiça — desde o berço suas mãos vêm sendo amputadas pouco a pouco pela sociedade: adeus, garras. Enfim, o ódio sublimado. Sete, mais do que todos, é a encarnação desse ódio. Há algo de religioso na sua figura silenciosa que, ora feito padre, ouve a confissão dos miseráveis e, ora feito Cristo, tenta levar a cabo pequenos milagres. Mas esses milagres — os inquéritos preparados pra não prejudicar os colegas, por exemplo — saem sempre pela culatra. Como o filho de Deus, Sete terá que percorrer mansamente sua via crucis, ao final da qual… Enfim, você já sabe.

Sete é a única personificação possível do Messias nos dias que correm. É ele quem deve guardar pra si — jamais pregar — a palavra do ódio. Tudo me faz crer que esse impulso de aniquilação leva a Deus, vem de Deus. O ódio é a única herança que o Criador, em sua infinita sabedoria, nos deixou. No princípio dos tempos, as primeiras civilizações foram fundadas a partir do crime, do parricídio, do assassinato do irmão mais fraco, de todos os tipos de assassinatos envolvendo membros do mesmo clã. Os clãs cresceram e multiplicaram-se, tornaram-se nações. As nações deslocaram-se sobre a terra, atiraram-se umas contras as outras, subjugaram e escravizaram. A civilização moderna ergueu-se sobre os ossos e o sangue das civilizações submetidas. A Península Ibérica devastou a América Latina. Esse movimento da História é incompreensível e inaceitável pra nós, perdedores. Contra ele há apenas o tédio, a entrega total do espírito. Mas que diabos é esse tédio senão o mais puro ódio sufocado?

Sete é a reencarnação dos anti-heróis de Camus e Sartre, pra quem a existência e o destino dos homens são eventos tocados pelo absurdo. A tolice dos seus gestos nasce da perspicácia: Sete compreende as regras do jogo, mas, diferente de Moitinho, Clara e os pais do protagonista, também sabe que a mera compreensão dessas regras não salva ninguém da cruz. Ele observa com muita atenção o comportamento de todos à sua volta. Traficantes e investigadores, cidadão comuns e delegados-chefes, o código de conduta que os norteia não é o código civil, tampouco o penal. Seus atos são regidos pela lei das ruas, pelo bom senso da selva. Olho por olho, dente por dente. Todos percebem os traços de degradação no próprio corpo, no próprio espírito, feridas abertas pelo cotidiano na metrópole. Todos aprenderam a lidar com isso, a tirar partido das boas oportunidades, essa é a ética vigente. Todos sabem que entre o certo e o errado há milhares de meios-tons. Menos Sete. Somente ele parece não se sentir à vontade entre os seus pares. Arrogância? Ingenuidade? Talvez.

Sete não é o cordeiro de Deus entre os lobos, é apenas o lobo que não acordou, o lobo sonâmbulo — como todos nós, bons cidadãos. Sonâmbulo, Sete vaga pela cidade, sem ter o que fazer, à espera do próximo plantão, das próximas vinte e quatro horas que passará enfurnado na delegacia. Sonâmbulo, Sete espanca o preso só porque todos estão fazendo a mesma coisa. Chuta meio sem jeito, sem vontade, sem prazer. Faz exatamente o que faríamos se estivéssemos no seu lugar. Quem nunca pecou que atire a primeira pedra. Somos todos tolos precários.

Comédia de erros
O tolo precário, do Wilson Rossato, venceu o II Prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira, promovido pela revista Cult em 2002. Também venceu o prêmio instituído pela Funarte de Brasília, tempos antes. Só que até agora, por razões que seriam cômicas se não fossem trágicas, não conseguiu ser publicado nem invadir as livrarias.

Bralé: o balé do Brasil varonil
A dança é o fio que alinhava os diversos contos do último livro de Marcelino Freire. Não a dança da alegria e da esperança, mas a dança da fome, da violência e do desespero. BaléRalé reúne dezessete contos curtos, dezessete coreografias tragicômicas dançadas por pés descalços sobre carvão em brasa. Dançadas na rua, no motel, no sertão, sem pompa nem circunstância, longe de nossos Teatros Municipais esnobes e afetados. Faz parte dessas coreografias elétricas, de curta duração, o contemporâneo nó de nossas contradições mais arcaicas: o homossexualismo, o analfabetismo, a subnutrição e o massacre das manifestações culturais populares.

O autor, pernambucano natural de Sertânia, onde caiu em 1967, imprimiu a seus bailados não o ritmo do balé clássico, porém o ritmo popular do frevo, do forró, do maracatu e da congada. É por isso que sua prosa tem causado tanto transtorno entre os leitores mais caretas. Ela está para a alta literatura assim como a MPB está para a música erudita. Quando pensar em Marcelino Freire pense, por exemplo, em Chico César e Zeca Baleiro. O problema é que, apesar de já existir na nossa literatura algo como a LPB — Literatura Popular Brasileira —, essa categoria ainda não conquistou a crítica mais presunçosa. Pra essa crítica, a prosa de Freire soa desafinada, dança mal, como se tivesse dois pés esquerdos. E tem! Razão pela qual não pára de pisar no calo dos leitores desavisados, convencidos de que “macho que é macho não calça sapatilha”.

A maioria dos dançarinos do BaléRalé baila apartada de seus pares, samba sozinha, pragueja sozinha. O monólogo é de fato o gênero mais praticado por Freire nesta e nas demais coletâneas de contos que publicou: AcRústico, de 1995, e Angu de sangue, de 2000. Monólogos tensos e esquizofrênicos, como o do conto que abre o livro, Homo erectus, sobre o primeiro homossexual de que se tem notícia, cujos restos foram encontrados por arqueólogos na Prússia. Ou o de Phoder, sobre a prostituta maternal e o cliente senil, em tudo parecido com um bebê. Ou de Darluz, sobre a indigente que se orgulha de dar os filhos, logo que nascem. Ou d’A volta de Carmen Miranda, solilóquio do último gay romântico do planeta.

Os melhores contos do BaléRalé são também os melhores contos gays publicados no Brasil nos últimos anos. O autor, nos já citados Homo erectus e A volta de Carmen Miranda, conseguiu aliar qualidade literária com militância, mas sem a necessidade de manifesto nem bandeira. A habilidade no manuseio da ironia e do humor contribuiu muito pra afastar dessas narrativas o pior vício em geral encontrado na literatura engajada: o vício do panfletário. Minha flor e A sagração da primavera, também protagonizados por homossexuais e elaborados em torno do preconceito e da crise sexual, só confirmam o que ficou dito.

Não há manifesto nem bandeira aqui porque é o sistema literário que dá as cartas, não o político. No caso do BaléRalé, o transe da prosa marcada pelo ritmo da poesia mais sofisticada, pela cadência do cordel aliada à do rap, potencializa a estrutura formal dos contos. Conseqüentemente, o fio narrativo — o conteúdo dos solilóquios, do discurso inflamado de cada narrador — deixa de ser o elemento mais importante e vê-se impedido de veicular dogmas e verdades absolutas. Mas não se vê impedido de pôr o dedo na ferida, seja na da miséria seja na do preconceito sexual.

Fogo
Marcelino Freire tem-se desdobrado e marcado presença, por onde quer que passe, como agitador cultural dos melhores. Não satisfeito apenas com o seu próprio trabalho literário, recentemente criou e está desenvolvendo dois projetos: a Coleção 5 Minutinhos e a série Lê Prosa, ambos em parceria com a Ateliê Editorial. A Coleção é composta de pequenos livros de grandes autores, tais como João Gilberto Noll, Moacyr Scliar e Manoel de Barros. São dez livrinhos distribuídos gratuitamente, pra serem lidos em trinta segundos. Este projeto deu tão certo que em pouco tempo abriu caminho para a segunda fornada, agora de livros infantis, reunindo autores do porte de Luís Fernando Veríssimo e Adriana Falcão. Já a série Lê Prosa reúne obras inéditas de autores novos e de consagrados — como o romance a.s.a.: associação dos solitários anônimos, de Rosário Fusco —, ou livros há tempos fora de catálogo, como as coletâneas de contos Tango fantasma e Diana caçadora, de Márcia Denser. Há quem julgue ser isso um defeito, há quem julgue ser uma qualidade: Freire não pára quieto, tem fogo nos pés.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho