Bebia em paz, numa abstração de vozes e trincar de vidros. Um riso, às vezes, arranhava minha paz como as garras de um gato à parede de um aquário. Superego entrou, deslizou pelas margens com pisadas alcochoadas e quando pressenti sentava-se do meu lado. Não há refúgio possível.
Um pote de adjetivos não bastaria para exprimir o desgosto que me causa — e sem que consiga abolir sua presença inoportuna. Para não mencionar o ridículo do traje, a capa azul, presa ao pescoço por um grosso cordão branco de nós, a escorrer pelos ombros; a não menos azul blusa de malha — onde graúdo e exibicionista avulta o S vermelho aplicado sobre um escudo amarelo — aderente ao corpo musculoso, de bíceps portentosos. E depois o infantil sou eu.
— E aí, tudo bem? — indaga com falsa amabilidade. Pretende que gosta imensamente de mim.
— Bem obrigado — respondo com secura, tentando deixar claro que não é bem-vindo — Estou esperando uma pessoa.
Como de hábito, não passa recibo:
— Vou lhe fazer companhia, até ela chegar — encontra sempre maneira de desmontar as armadilhas que vou salpicando pelo caminho.
Serve-se de bebida e gelo, sem que eu ofereça, sempre muito seguro de si, o que me aumenta a irritação.
— E aí, como vai a literatura? — pergunta, depois de sorver com gosto um gole comprido, fechando os olhos. Sabia que ia tocar no assunto.
— Vai se levando.
— Escrevendo muito? — insiste.
— O de sempre — para meu desgosto, e malgrado promessas reiteradas, nunca deixo de responder-lhe.
— Você é persistente. Fosse eu, já teria desistido há muito tempo.
— Acontece que não sou você.
— Exatamente. Mas não se aborreça. Quero dizer que o admiro, pelo fato de você, sem praticamente obter resposta, perseverar nessa mania.
— Não creio que mania seja uma boa palavra para designar minha atividade.
— Ideal de vida talvez … — ri, no tom sarcástico habitual.
— Não me considero idealista de nenhum tipo. Aliás, essa é outra palavra que não me agrada — não tento esconder a raiva — Diria simplesmente que escrevo porque gosto. E talvez também porque é um trabalho que posso fazer. Tão somente por isso, assim, singelamente.
— Não se zangue, a minha é uma pergunta natural. Afinal de contas, essa é uma questão com que todo escritor, sobretudo em nosso país, deve se confrontar: a quem serve o que faço?
— Poderia responder que, no meu caso, serve a mim. Serve à busca por mim mesmo ou, simplesmente, para ultrapassar o tédio da existência.
Pausa para um novo gole. E aí, para minha posterior mortificação, ante a expectativa incansável do outro, não me impeço de prosseguir:
— Mas não seria uma resposta totalmente sincera. Na verdade, escrevemos sobretudo para de algum modo alcançar os outros. Como declarei certa vez, um escritor numa ilha deserta, ou que se soubesse o último sobrevivente de um mundo extinto, não escreveria nada — a menos que tivesse a esperança, por mais remota que fosse, de que sua mensagem lançada numa garrafa poderia ser um dia colhida pelas mãos de um outro homem.
— Bravo, muito bonito — bate palmas, sem que elas cheguem a ecoar — Mas o que me interessa são resultados práticos, objetivos. O que você conseguiu, com tanto empenho, no trabalho de toda uma vida? Vamos, diga lá.
— Acredito que o interesse, e quem sabe o respeito, de um punhado de pessoas.
— É, tudo é possível. Mas não ganha dinheiro com isso, não é? Quantos leitores tem?
Não respondo.
— Quem sabe você sonhe com algum tipo de imortalidade. Aquela velha esperança de que, após a morte, um pesquisador qualquer faça a sua misteriosa descoberta e o mundo se pergunte perplexo como pôde viver até então sem uma obra tão relevante — sempre o sarcasmo barato.
— Agora você me faz sorrir. Para mim, a imortalidade tem a duração exata de minha vida. O que vem depois é apenas o nada; ou equivale ao nada.
— Voltemos então às questões práticas. Quanto você recebe, digamos anualmente, de direitos autorais?
O bar está cada vez mais movimentado e temo que ouvidos próximos possam captar a conversa. Não me agradaria entregar a estranhos, numa bandeja, suscetibilidades, sentimentos tão íntimos.
— Essa é uma questão que a ninguém deve interessar; quando muito ao imposto de renda — saio pela tangente; mas de fato é a mais inconveniente das indiscrições — Além do mais, a produção de best sellers nunca foi meu objetivo. Sempre quis fazer literatura de verdade.
— Ah sim, literatura de verdade ! — ecoa Superego — É, pode ser — diz, enquanto esvazia o copo — Mas você sabe que o dinheiro é o metro de aferição — a notoriedade é outro e sua irmã gêmea — com que se mede o êxito em nossa sociedade. Você é uma notabilidade? Já se deu ao trabalho de dividir o que já ganhou com literatura pelo número de horas despendidas em produzi-la?
— Recuso-me a ver a questão sob esse seu mesquinho ângulo mercantilista.
— Você pode se recusar, é um direito seu. Mas outros não o farão, na hora de julgá-lo.
— Van Gogh nunca vendeu um quadro em toda a vida.
— Está querendo se comparar a um gênio das artes?
— Não. Apenas quis dar um exemplo de fidelidade a princípios.
— Ora princípios. Nós vivemos a era pós-moderna, meu amigo. Posso lhe dar um conselho, para seu próprio bem? Empregue seu tempo e suas energias, sobretudo as psíquicas, numa outra atividade, que lhe garanta uma resposta mais concreta, um retorno visível, inclusive em termos financeiros. Por que não? Ganhar dinheiro não é nenhum pecado.
Ergo-me, jogo sobre a mesa uma nota que ultrapassa em muito a despesa.
— Quem sabe você possa ter alguma razão. Mas só lastimo que seja tão obtuso, a ponto de não compreender que minha opção não poderia ser outra. E que, por incrível que pareça, sinto-me feliz com ela.
— Já vai? Não estava esperando uma pessoa?
— Ela não virá. E olhe, Superego: não posso dizer que foi um prazer beber com você — sou incisivo, antes de dar-lhe as costas e abandonar o bar, tentando manter o caminhar reto e a cabeça o mais erguida possível.