Bárbara

Conto inédito de Jeová Santana
Ilustração: Bruno Schier
01/01/2024

A Rinaldo de Fernandes

Quer saber? Sim, é muito ódio. Mas não tenho dúvida que há também uma arretada dosagem de inveja. Do nada, uma pessoa que fez parte de uma quadra significativa de nossa juventude, que dividiu algumas séries na mesma escola, promover uma revolução que contraria a moral, os bons costumes, os valores da família. Puta que pariu! Rolou um afastamento total. Do grupo mais próximo sou o único que ainda lhe estende algum cumprimento formal, distante e frio. Não foram poucas as vezes que parei em frente a sua casa, uma vontade enorme de entrar para bater um papo, mas me limito a contemplar o seu jardinzinho sempre bem cuidado, cheio de flores com nomes engraçados, tipo madressilva, miosótis e maria-sem-vergonha.

Quando começaram os grupos de whatsapp instalou-se o inferno. A maledicência passou a correr solta. O caso mais grave foi a denúncia de sedução de menores. Rolou batida policial e o diabo. Naquela tarde, mães furibundas arrastaram filhas ainda carregadas de maquiagem e pedaços de figurinos. Só se salvou porque as raparigas em flor desfizeram os equívocos, disseram às autoridades constituídas que se tratava de um ensaio para a formação de um grupo de teatro amador.

Nutro, confesso, uma admiração silenciosa por seu destemor, inteligência e sensibilidade. De outra feita, todos tiveram que engolir sua performance num programa de entrevistas na TV. O que deveria servir de orgulho para a comunidade, diante do seu conhecimento sobre a arte em geral e a literatura em particular, só fez crescer a maré dos ressentimentos. Mas nunca baixou a cabeça. Anda com o nariz para cima, na linha do não devo nada a ninguém, metam-se com suas vidas, vão para a casa do caralho!

Faz tempo que passou a frequentar os perigos da noite. Para tirar godô, sai de casa no próprio carro. Uber somente em último caso. Não tem medo de comprar cigarros nos bares mais frequentados. Nem aí para os tantos olhos a destilarem desprezo, de cima abaixo, sobre a indumentária de godês, babados e trancelins. O que me deixa de queixo caído é a habilidade de andar sobre os saltos-plataforma, ora pretos, ora vermelhos, com uma leveza que parece fazer parte, desde sempre, de sua natureza. Mas a gente sabe que não é bem assim. Está na memória de todos a força dos punhos no instante em que é necessário não levar desaforo para casa.

Há de se pensar em premeditação ao se aproveitar o dia da procissão da padroeira. A chance de não haver testemunha na rua sempre tranquila, com umas três casas do tempo antigo, que parecem saídas dos desenhos coloridos das crianças. Nesses tempos de bagulho louco, infelizmente a religião não é barragem de contenção. Portanto, não seria surpresa se alguns dos agressores, antes das atrocidades prometidas, segurarem o andor ou baterem no peito na hora dos cânticos, com os olhos contritos voltados para o alto. Na hora da brabeza, pulam num pé só, ficam pinotando feito bode.

Fiquei sabendo que a ordem é lhe dar um susto, queimar livros e vestidos, arrancar cartazes, rasgar álbuns, despedaçar o altarzinho onde São Jorge e Iemanjá convivem numa boa. Além de tudo, ainda faz macumba! teria gritado um deles, policial aposentado, reaça e cheio das fobias, no meio da bebedeira em que acertaram o Dia D no boteco do Frei. Quanta barbaridade! Há até um tio meu envolvido na mutreta. Chegou ao desplante de montar campana para saber dos horários. Fala em beber sangue. Fica possesso quando alguém lhe sopra o tal do nome artístico. Só vai no cipó caboclo! E tome murro na mesa que faz garrafas e copos improvisarem um balé desastrado. Difícil prever o desfecho. Pode faltar um cabelinho de sapo para trucidar e jogar no lixão. Multidão sem peia é porco selvagem cutucado no cu.

Preciso fazer alguma coisa sobretudo porque o olhar penoso não desapareceu com a dureza dos anos. Faz-me lembrar o da menina que minha mãe criou no dia em que lhe ergui a mão. Não, você não! Congelei. De lá para cá, não aturo nem o de bichos como cães e gatos de rua, quanto o mais de alguém que tem topete para enfrentar as barbeiragens desse mundo. Não tenho como peitar sozinho essa horda de loucos espremida na nau dos insensatos. Sei que minha mãe, pelo amor que tem ao irmão, será capaz de ter um troço, ficar morre não morre se souber que fui eu quem o denunciou. Foda-se! Dizem que a poesia não serve para porra nenhuma, mas pulsa em mim o último verso de Pessoa em “Nevoeiro”.

Jeová Santana

Nasceu em Maruim (SE), em 1961. É professor titular da Universidade Estadual de Alagoas. Publicou Dentro da casca (1993), A ossatura (2002), Inventário de ranhuras (2006), Poemas passageiros (2011), Solo de rangidos (2016), Estilhaços (2021) e Rasuras do imaginário (2023), entre outros.

Rascunho