Aurea

Trecho do romance Aurea
Ilustração: Denise Gonçalves
01/06/2023

Romance escrito em parceria com Aurea Pereira Sterbel

7. Garimpo do João Pretinho

Aurea acordou cedo. Gostava da rotina. Do cheiro do café na casa ainda silenciosa, de sorvê-lo ainda assonada. Hoje, porém, seria diferente, tinha uma longa viagem pela frente. O pior não era o caminho, mas a partida. Não vai ser fácil deixar a filha. Mas vai. Resolveu. Não tinha mais volta.

O garimpo do João Pretinho ficava no Pará, na região do Vale do Rio Tapajós; o nome da cidade desapareceu na memória. Foi para lá a chamado de uma amiga que vislumbrou riqueza. Estava numa dureza sem fim, com a filha pequena e sem perspectiva. Decidiu deixar a filha com o irmão mais velho, Aurélio, em quem confiava, e se aventurar por esse chão. Deixou-se levar pelo sonho do ouro, embarcou na promessa. Foram juntas. Com vinte e tantos anos, Aurea foi ser cozinheira no garimpo do João Pretinho.

A viagem demorou quatro dias de ônibus, dois dias de barco e mais umas horas de avião. Entraram na selva por Marabá, no Pará, de lá pegaram um bimotor que as levaram até o garimpo, que era o que chamam de garimpo dos altos, aonde só se chega e sai de avião. Nunca tinha andado de avião e, ao perguntarem se tinha medo, disse: Se um homem já foi, eu vou também.

A última etapa da viagem de ida, a parte aérea, o dono do garimpo pagava a título de empréstimo, era uma forma de aliciamento, uma balela para capturar esperançosos. Uma vez lá, o dono tinha o monopólio e sabia com dificultar a volta. O preço da passagem de volta era praticamente impagável, mas quem pensava nisso na chegada, cheio de sonhos e esperança?

Havia no garimpo pessoas de diferentes origens, com experiências de trabalho diversas. Pindaré, por exemplo, tinha sido jogador de futebol; sem emprego, foi para lá como muitos para enriquecer. Seu apelido era o nome do seu lugar de nascimento. Cada um que chegava recebia um apelido, geralmente o nome da cidade de origem ou uma característica própria predominante. Aurea, apesar de ser mineira, ficou conhecida como Baiana; pois diziam ser muito cheia de vida, atirada. Assim ficou.

A realidade era bruta, imperava a lei de cada um por si. O chão do garimpo por onde homens e mulheres transitam é como areia movediça, e pode engoli-los a qualquer momento, difícil de se libertar. As chances de sair de lá sem vida eram grandes, a morte os rodeava constantemente… doença, violência, acidente, desespero ou pura desilusão. Chegavam com sonhos e eram confrontados com uma realidade tão dura como os barrancos que as dragas comiam para expelir o ouro. Com a terra destruíam tudo que tinha pela frente.

O barro residual da despescagem é uma terra doente, com pouquíssima fertilidade para gerar brotos e alimentos, praticamente não nasce mais nada. Tentando conseguir novos alimentos, Aurea plantava ali mesmo, não tinha opção. Plantava leguminosas, persistia. Com muito trato, conseguia colher maxixe, às vezes um tomate ou outro, mas na ordem do milagre.

Não havia praticamente nenhuma infraestrutura, pouca variedade de alimento e quase nada fresco. Havia uma mercearia onde os peões compravam seus alimentos, farinha de milho grossa, açúcar, óleo, carne seca, sardinha em lata e ovo. Viviam de omelete, farofa com carne seca e sardinha entalada. Vez ou outra um peixe fresco. O ditame era ser criativo e ter disposição.

Aurea fazia das tripas coração. Quando chegava carne fresca, não era mais fresca. Em trânsito por horas debaixo de um sol de quarenta graus, mesmo em isopor, o pouco que chegava era quase sempre pútrido. Nos dias de sorte, quando aproveitável, fazia milagres com sua tábua de bater carne, até carne moída para o pastel saía das suas mãos, para felicidade de uma gente carente de tudo. Fez logo amizade com as meninas da boate, todo mundo fez amizade com ela. Como cozinheira reinava sobre os alimentos, tinha certo poder, a comida também era nesse desterro inospitaleiro uma moeda forte na troca de favores. Na cultura do garimpo era usual se pagar serviço com ouro. Os peões jogavam bola e pediam para Aurea lavar suas roupas encardidas de barro, pagando com um tiquinho de ouro. Essa foi uma forma de juntar algum dinheiro e melhorar as economias.

A sede do garimpo ficava na beira da pista de pouso. Era um conjunto de casas de madeira e lona preta, cada uma com uma atividade própria. Tinha o escritório e a casa do João Pretinho, a comedoria, o bar com uma boate, um dormitório e uma mercearia. Aurea tinha o direito de morar no dormitório que ficava atrás da cozinha, uma construção comprida com vários pequenos aposentos com rede e sem cama, que davam para um longo corredor com um banheiro coletivo no final. Quando contraiu malária e muito enferma a ponto de não poder mais cozinhar, Aurea parou de receber salário, mas pôde permanecer por lá.

Quando ficou doente, ficava o dia inteiro no quarto, sem tarefa nem distração. A inércia só fazia aumentar a angústia. Sentia uma saudade doentia da filha, como se um pedaço do peito tivesse sido arrancado. Uma hora se descontrolou, não dormia há dias, não sabia dormir em rede. Era filha de baiano, mas na sociabilização, mineira. Deitada na rede enviesada, enfurnada no quarto, surtou; não foi a primeira vez. Com seu histórico e no seu limite psíquico, essa situação de impotência e exaustão quase a levou ao enlouquecimento. Quando lhe batia essa agonia, querendo voltar para casa, sem dinheiro para passagem de volta, ela corria para se atirar no rio Tapajós, queria morrer de qualquer jeito, queria pôr um fim, queria. Nessas horas, aquela amiga que prometeu fortuna corria atrás, aflita, com medo de perder Aurea, gritando:

— Baiana, não pula, você não sabe nadar!

Mas Aurea não aguentava mais. Nessas ocasiões a companheira arrumava uma garrafa de uísque e as duas faziam peixe fresco na folha de bananeira e bebiam até esquecer. A amiga não aguentou, partiu na primeira oportunidade para um outro garimpo, mais urbano, renovada esperança.

A malária de três cruzes que assolava o garimpo do João Pretinho era endêmica. Na beira do rio, com águas paradas, era um manancial para a doença. Praticamente impossível não pegar. Para curar, quinino. Aurea sofreu muito, tinha febre de hora marcada. Todo dia às seis horas caía num febrão delirante. Tinha alucinações, dores no corpo, pensou que fosse morrer sem rever a filha.

Tomava um comprimido de quinino por dia, tratamento ainda em voga naquele tempo. Ali, não havia hospital, nem nada. Doente, sem condições de trabalhar, não recebia. Na economia informal do garimpo, só trabalho efetivado era remunerado. Sem dinheiro para comprar a passagem de volta, que na época custava cinco mil reais, ficou ilhada nesse moedor de gente.

Um certo dia, chorando desesperançosa, escutou alguém bater na porta; ela pergunta quem é. A voz do outro lado da porta disse:

— Oi, Aurea, não assusta não, sou eu, a mamãe. — Ela, então, atravessou a porta sem abrir e adentrou o quarto. Estava com um vestido azul-claro, tipo camisola, linda e angelical na lembrança da Aurea. Sua mãe então lhe disse:

— Não se preocupa, Aurea, eu arrumo uma saída para você. Você vai embora. Vou achar uma solução.

Aurea se acalmou com a visão do espírito da mãe. Se foi visão ou delírio, não se sabe. Dormiu, enfim, reconfortada e confiante em seguida.

No outro dia, três horas da tarde, chegou um avião. Entre os recém-chegados estava um garimpeiro do Maranhão, Guimarães. Arredio, chegou para ser encarregado do Baixão, sítio de cata e despesca do ouro e de morada dos peões. Quando Aurea o viu, gamou. Ele quis outra, uma menina loira da boate, Isabel. Isabel era muito amiga de Aurea, divertida, se entendiam. Aurea gostava de Guimarães, que gostava de Isabel, que gostava da vida. Sabido é que esta escreve certo por linhas tortas. Quando Isabel num rompante resolveu partir para outro garimpo, Aurea aproveitou a chance e o conquistou num forró na boate. Aceitou o convite para morar com ele no Baixão, numa barraca caiada, de lona preta, embaixo de um sol inclemente, lá dentro temperaturas infernais. Guimarães arrumou um colchão velho, fez uma cama de forquilha, ela tinha medo de cobras e caninanas não faltavam. Era um luxo ter um leito e privacidade num mundo em que todos dormiam amontoados. Como encarregado do Baixão, Guimarães tinha privilégios.

Da pista de pouso, a uns dois quilômetros mata adentro, em direção ao rio, ficava o Baixão. Os peões trabalhavam e viviam entre barrancos, dragas, buracos, carpetes, em barracas feitas de toldo e plástico. Na despescagem, lavavam o barro nos carpetes para separar os elementos residuais do ouro. A água lava e leva o supérfluo. O mais pesado, um metal prateado brilhante, fica preso no carpete. Para o ligamento, jogavam azougue. Ninguém se importava com a saúde, com o meio ambiente, com a natureza. O que valia era o metal, o resto era resto. O metal prateado depois de ligado era queimado numa bateia com maçarico. O líquido dourado resultante fazia tudo ter sentido.

Guimarães era responsável pela coleta, pela despescagem e pelo policiamento do garimpo. Havia muito roubo, muitas mortes. Um boato de fortuna já bastava para a execução sumária. Um amigo morreu de morte matada. Fez muito ouro, enfim sua chance de liberdade, sonhou. Encontraram-no morto depois de dias. Roubaram o ouro, a vida, até as entranhas. Encheram o ventre murcho com pedras, jogaram-no ao rio. Quem achava pepita, melhor se calar. Pindaré, o ex-jogador de futebol, esperto, um dos poucos letrados e que ajudou Aurea quando estava com malária, lhe aplicando soro quando tinha, foi um dos poucos que saíram de lá com dinheiro, na surdina.

Nota
O romance Aurea será lançado em breve pela Folhas de Relva.

AUREA PEREIRA STERBEL
Nasceu em 1955, em Belo Horizonte (MG). Mudou-se para Alemanha em 1995. Separada, vive em Frankfurt com a filha e quatro netos.
Paula Macedo Weiss

Tem mestrado e doutorado em direito pela Universidade de Tübingen (Alemanha). Em Frankfurt, é presidente da Fundação do Museu de Artes Aplicadas e integra o conselho de curadores do Teatro Municipal. É também membro do Conselho diretivo do KW Instituto de Arte Contemporânea em Berlim e da Bienal de Berlim. No Brasil, é membro do Conselho Consultivo Internacional da Bienal de São Paulo. É autora de Entre nós e Democracia em movimento, ambos pela Folhas de Relva.

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