Poemas de Augusto Sérgio Bastos

Leia os poemas "O milagre do pão ou Receita para fazer poema", "Mudança", "O caos e o asco", "A estátua", "De um armário", "Dívida" e "Página virada"
01/09/2009

O milagre do pão
ou Receita para fazer poema

Para fazer o poema
é preciso pôr a mão na massa.

Escolher os ingredientes:
as palavras na medida certa
— trigo e fermento
para o poema crescer.
Uma pitada de sal não pode faltar.
Açúcar, um pouquinho só:
dos açucarados devemos ficar longe.
Mas há poema doce e de sal,
sovado, light, integral.

Capriche na forma e evite as fôrmas.
Não enfeite demais,
no miolo está o valor do poema.
Mexa, remexa,
trabalhe bastante.
É preciso comer o pão que o diabo amassou,
mas não deixe o suor à vista.
Pequenos cortes darão vida
e consistência.
Quando estiver pronto,
deixe-o descansar
— na gaveta.
Não há forno para poema.
É no calor do leitor que crescerá.

Muitos dizem que ele não é necessário,
mas a alma precisa comungar com a poesia.
No poema a hóstia será consagrada
e o pão nosso virá a cada dia.

Mudança

Lá se vai a casa
cheia de medos da infância
e malas confidentes.
Os caminhos a levam.

Da viagem
o cansaço acomoda
panelas, móveis
e minha coleção de selos.

O assoalho geme à falta de intimidade.

A noite cuida do meu quarto:
olhos sonolentos tropeçam
na áspera parede de chapisco
— montanhas intransponíveis.
Amanhã saberei teus cheiros,
tua voz e o segredo de tuas cores.

Hoje não tenho a chave da porta.

O caos e o asco

Dançar como os pardais, no azul do espaço,
para escapar à fúria que há no aço.
Reynaldo Valinho Alvarez

O caos e o asco
deixam a vida sem escolha.
O acaso, novo deus,
esbarra o dedo na ferida.
Na bolsa de apostas,
o ocaso do bom senso e o nonsense.
O que te aguarda na esquina?

A cada manhã o mesmo breviário.
Ao sinal vermelho,
a busca de abrigo,
as pernas bambas,
a balbúrdia das sirenes.

Aberto o sinal,
os malabares não brincam mais.
Restam lembranças
dos bambolês, amarelinhas
e doces balas perdidas na infância.

As mãos atadas apontam para o nada.
Dor alheia é dor do outro,
e banal a barbárie na TV.
Mas o outro somos nós,
entre o caos e o asco,
neste Rio do Esquecimento.

A estátua

No mar estava escrita uma cidade.
Carlos Drummond de Andrade

Ser estátua
não é pedido que se faça.
E ele nem pediu.

No banco de pedra, de costas pro mar,
pensa a cidade.
Acolhe pombos e aves agourentas.

No meio-dia branco de luz,
o menino permanece sozinho.
O homem atrás dos óculos
quer a sombra de amendoeiras.
Tem oitenta por cento de ferro na alma.
Cem por cento de bronze na eternidade.

Alguns anos viveu no Rio de Janeiro,
serviu à cidade
que agora de nada lhe serve.

Ao povo sem memória,
a história mais bonita,
comprida história que não acaba mais.

De um armário

Três gavetas duas portas:
o que guarda o antigo armário
mineiro pinho-de-riga?

Guarda o tempo e a memória.

Três gavetas duas portas:
não guarda roupa louça ou dinheiro
nem remédio que cura e envenena.

Guarda o mistério alcoviteiro.

Três gavetas duas portas:
não tem chaves mas segredos
que os anos agora revelam.

Em duas gavetas e duas portas
guarda gestos e remorsos
velhos sachês folhas mortas.

É a terceira gaveta que mostra
no deslizar sem atrito
o século de usura.

Esconde no vazio de pudor e nódoa
o que com zelo guardou:
envelope fechado com selo e censura
— última carta de amor.

Dívida

Drummond é Deus. Pai inalcançável.
Armando Freitas Filho

Eu não pensei em falar de Drummond.
Pelo menos neste poema, não quero.
Mas como evitá-lo? Como esquecê-lo
se a sua imagem é onipresente?

Lá está, sentado, de pernas cruzadas,
as costas pro mar de Copacabana.

O hábito de sofrer que o divertia,
era doce lembrança itabirana.
Já não sofre nem se diverte mais.
Agora estátua, apenas bronze frio,
o banco de pedra é quase um altar.

As crianças o tratam como santo.
Indecisos, adultos se dividem:
alguns adoram, vândalos aviltam.

No poema de Armando, Drummond é Deus.
Eu acredito. É Deus, está escrito.

Página virada

Ah, vida, porque pões asa
no sonho e não em quem sonha?
Afonso Felix de Sousa

O tempo se dobrou como a folha do dicionário.
E foi deixando marcas indeléveis.

À primeira dobra não dei importância.
Acreditei que um passar de dedos poderia alisá-la,
o próprio peso do papel iria corrigir o amassado.

Um dia, os sonhos foram perdendo altura
e soube que essas marcas nunca sumiriam.

Página virada, a ruga, hoje, faz parte do sorriso.

Augusto Sergio Bastos

Nasceu no Rio de Janeiro. Ganhador de diversos prêmios literários, é autor de O branco improvável (poesia, 2002), e organizou Melhores crônicas de Ferreira Gullar (Global Editora, 2004) e Poesia completa, teatro e prosa de Ferreira Gullar (em colaboração com o organizador geral Antonio Carlos Secchin. Nova Aguilar, 2008).

Rascunho