Assalto

Conto de Salim Miguel
01/03/2003

Com licença; bom dia; posso sentar, né; se tu estás neste escurinho é porque vais dilatar a pupila; ah, aqui está ela, cada vez mais bonita e simpática; estou há tanto tempo me tratando que até já me viciei neste colírio; me dou muito bem com o médico, ele sempre acertou comigo; contigo também? Vai para um mês, fiz uma cirurgia de catarata; devia ter voltado aqui uns quinze dias depois; não deu; é que eu moro em Imbituba e dependo dele; meu filho é muito ocupado, tem muitas atividades, além disso enfrenta um problemão; é hoje um homem de posses, posso mesmo dizer rico, embora tenha começado lá de baixo.

Pra falar a verdade, me sinto dividido. Perto de Imbituba existiam duas freguesias tranqüilas; as gentes viviam da pesca artesanal e de umas rocinhas. Lugar muito bonito, praias como poucas, meu filho, homem de visão, não teve dúvidas, arranjou dinheiro nem sei como, aqui e ali, fez empréstimos na Caixa, quando os juros não eram esta loucura e ficou esperando. Não demorou a invasão de gaúchos e paulistas, até alguns catarinenses. No começo, para saldar algumas dívidas, se desfez de uns terrenos; mas ele tinha faro para negócios. Logo criou uma pequena imobiliária, que de pequena hoje não tem nada, e se pôs a construir casinhas, depois casas, casarões, prédios de quatro e seis apartamentos. Repito que no começo fiquei dividido, tive violentas discussões com ele, em lugar de peixe, as baleeiras agora pescavam turistas; árvores frutíferas, as hortas, os jardins, as trocas entre parentes e amigos, onde o dinheiro pouco contava, tudo ia sumindo.

Meu filho mora em uma das praias, é homem importante, de posses, tem um casarão que é quase um palácio, três carros na garagem, um utilitário, um Corsa para a mulher e para ele um carrão importado, nem sei de que marca.

Até aí, pra ele, tudo bem. Só que a vida não era mais a mesma coisa. A tranqüilidade se fora, com os turistas vinha tanto gente boa como gente ruim. Eu não me sentia à vontade e, embora fosse perto, era raro visitar meu filho. Não sou de ficar olhando para trás, mas sentia falta dos outros tempos.

Estás interessado no que estou contando, me acompanhaste até aqui? Então vamos adiante. É agora que começa o problemão de que te falei há pouco.

Era de tardinha, minha nora e minha neta estavam em casa, meu filho não tinha hora certa para chegar do escritório. Um movimento brusco na porta de frente e entra um homem. Minha neta havia se esquecido de trancar a porta. O homem empunhava uma navalha e um punhal e foi dizendo, calma, não gritem, quietas, senão será pior. Tu, mocinha, vai até as cortinas e arranca os fios, rápido!

Minha neta tem quatorze anos, ficou transida, indecisa, mas minha nora pediu que ela obedecesse. Com as cordas nas mãos, o homem mandou que ambas sentassem em duas cadeiras próximas e amarrou suas mãos e pés, sempre de navalha em punho. A mocinha reclamou tinha uma dor forte em uma das pernas, resultado de uma queda e o homem afrouxou um pouco os nós.

Muito estranho, nunca me senti assim; estou calmo e tranqüilo, desde que entrei nesta casa; sou violento, muito violento, e tenho motivos de sobra para isso, mas não quero fazer mal a ninguém aqui, depende de vocês, da maneira como se comportarem.

Eu queria ser um trabalhador, um homem comum, vivendo a minha vida. Mas o destino não quis. Vocês duas devem estar se perguntando por que conto tudo isto. Nem sei, nunca me senti deste jeito. Há dias venho acompanhando o ritmo desta casa, sei como vocês se movimentam, como agem, o que fazem, em que horário o homem deve chegar, da mesma forma que sei que são muito ricos. Não quero expropriar, mas quero uma fatia, pouca coisa.

Explico pra que me entendam. Meus pais tinham um terreninho de nada, árvores frutíferas, um ranchinho, uma vaca leiteira, uma horta, minha mãe cuidava da casa e fazia renda de bilro. Eram eles, mais minha irmã da idade desta, que ajudava na lida da casa e à tarde ia para a escola. E eu que não encontrava emprego, não me demorava em lugar nenhum. Sonhava em estudar e ser alguém na vida. Estava de vigia noturno num hotelzinho. Certa manhã chego, vejo uma ambulância, carros da polícia e a casa rodeada pela vizinhança. Quis entrar, um guarda me impediu; insisti, dei um safanão e entrei. Por mais que viva jamais esquecerei o horror do que vi: meus pais assassinados a golpes de enxada, minha irmã estuprada e estrangulada.

Por dias, semanas, não sei o que fiz, nem por onde andei. Na delegacia me pediam paciência, que estavam seguindo pistas. Cansei daquela baboseira, não agüentei mais e saí à caça. Na vizinhança ninguém sabia de nada, mas o medo no olhar dizia o contrário. Forcei um deles, jurei segredo e, a contragosto, ele contou que, dias antes do crime, vira um carro com três homens, rodeando a casa. Não conseguira ver quem eram, mas tinha umas dicas sobre o motorista. Não tive mais sossego. Procurei nas praias, nos hotéis, nas pensões, nos bares e botecos. Não sei se foi um golpe de sorte, o que sei é que encontrei o monstro. Escondido, esperei que acabasse de beber com umas donas; quando ele saiu, acompanhei o cara até um lugar deserto. Pulei em cima dele, cravei o punhal em seu pescoço, gritando “Foi tu”. Com este punhal, arranquei-lhe as partes e botei num saco plástico. Escondi o punhal num toco de árvores e fui para a delegacia. O delegado não estava. Joguei o plástico em cima da mesa e disse para o soldado, “Taqui o homem que estuprou minha irmã”.

A cela onde fiquei tinha lugar para vinte presos e a gente era mais de quarenta, uma privada só. Se um se demorava lá dentro, quem tinha urgência fazia mesmo nas calças. Era também um chuveiro só, quase sempre sem água. O fedor, insuportável. Dormíamos por turnos. Havia de tudo ali: ladrão de galinha, assassinos de profissão, punguistas; uns já condenados, outros esperando julgamento e vários com a pena já cumprida.

Começamos a pensar numa fuga. A cadeia ficava distante do centro, três soldados cuidavam de tudo. Num anoitecer, um preso começou a gritar que estava mal, pedimos socorro, quando um soldado veio para ver o que estava acontecendo, foi dominado e foi forçado a chamar outro, logo também preso. Dois dos nossos trocaram de roupa com eles, que foram amarrados e amordaçados com lençóis. Estávamos saindo quando apareceu o terceiro praça, que levou um tiro na cabeça antes de poder reagir. Não vou contar tudo que aconteceu na fuga, só que, sem nunca ter usado uma arma de fogo, fui acusado da morte do praça.

Vocês podem, e com carradas de razão, estar se perguntando por que conto tudo isto. Não sei, ou melhor, acho que já sei. É esta mocinha, ela me lembra minha irmã, parece da mesma idade, o mesmo jeitinho de mexer a cabeça, o olhar.

Entrei aqui com uma intenção ruim; mesmo que eu queira, não tenho mais volta; nada tenho a perder além da vida. Tudo o que acontece, assaltos, roubos, mortes, sou eu o culpado, mesmo quando ocorrem em pontos distantes, no mesmo dia e na mesma hora. Tive de aceitar o que estava acontecendo; modifiquei minha cara, cortei o cabelo que era comprido, raspei a barba e o bigode, passei a usar uns óculos grandes e a mudar de um lugar para outro.

Ao entrar nesta casa, senti uma coisa estranha, que mexeu comigo. Por isso não quero nada de violência, quero o que quero, o carro, já estou com as chaves e os documentos. Preciso também de dinheiro; já vasculhei tudo, armários, guarda-roupas, debaixo dos colchões, gavetas, abri panelas, caixinhas, latas e nada. Só encontrei na bolsa maior 42 merrecas e na menor cinco. Deve ter um cofre num casarão como este, me digam logo onde está, antes que eu fique violento e comece cortando a palma da mão da dona aqui, com a navalha. Repito, não quero fazer isto, mas não tenho saída, está quase na hora do dono chegar.

Ainda bem; então está atrás do quadro; me passe o segredo. Puta merda! Nada, nem um real, nem um dólar. Não posso sair de mãos abanando, tenho de esperar o dono da casa; ele irá até um caixa-eletrônico, com uns dois mil eu me vou. Pra ninguém sair ferido, vamos fazer um trato, quando ele abrir a porta vocês vão falar normalmente, ele não tem como ver a gente; se ele reagir é um homem morto, se não converso com ele, saímos, vou com ele até um lugar que já escolhi, no meio de um matagal, deixo ele lá amordaçado, vou ter tempo de ganhar distância. Aqui já cortei os fios telefônicos, estou levando o celular e fechei as cortinas.

Atenção. Escuto um carro se aproximando, estacionou, desligou o motor, fechou a porta, ligou o alarme, silêncio, me obedeçam, está subindo a escada, se aproxima da porta, vai abrir a porta…

— Seu Algemiro, está na sua hora, o doutor está esperando, vamos.

— Já? Que pena! não posso deixar o doutor esperando, tem uma fila de gente que não acaba mais, bem que eu gostaria de terminar o causo; quem sabe se quando eu sair da consulta tu ainda estás aqui. Caso não, outro dia qualquer a gente acaba se encontrando. Até…

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Salim Miguel

Nasceu no Líbano em 1924 e chegou ao Brasil com a família em 1927. É jornalista e escritor, com 30 livros publicados. Estreou em 1951 com Velhice e outros contos. É autor do premiado romance Nur na escuridão. Seu livro mais recente é Reinvenção da infância.

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