As sandálias de hermes (ou a impossibilidade do vôo)

Conto de Paulo Sandrini
Ilustração: Marco Sandrini
01/04/2004

Dinheiro nos dá asas pra voar, me disse uma vez o patrão, num dos últimos empregos que tive, alguns anos atrás. Ele vivia me repetindo esse clichê típico dos endinheirados. Com dinheiro a gente compra o que quiser e influencia pessoas, acrescentava ainda. No entanto, faz um bom tempo que não me passa pelas mãos esse deus-todo-poderoso que é o cascalho, a prata, a bufunfa. Vivo de restos. De coisas pegas no lixo. Minhas asas (essas asas-dinheiro de que o patrão falava) há muito me foram cortadas, quando gastei os últimos caraminguás do seguro-desemprego num bordel de quinta categoria, tomando um porre e dando uma bimba numa ruivinha manquitola, doidinha de feia.

Comprar o que quiser. Influenciar pessoas. Dispensaria tudo isso se um dia conseguisse tirar os pés deste país assolado pela miséria e tivesse oportunidade de conhecer lugares distantes, daqueles que eu só conheço nas páginas das revistas que às vezes encontro nos restos que fuço feito um rato, um porco, lá no buracão, que é como também é chamado o lixão municipal.

[caribe sibéria indonésia tasmânia groelândia saara bagdá terra do fogo amazônia o velho continente]

Repito, então, a mim mesmo estes clichês dos miseráveis: sonhar não faz mal; dar asas à imaginação não requer dinheiro. E isso me impele a seguir buscando alternativas pra resolver os reveses do momento e achando utopicamente que um dia a coisa se inverte. Neste momento é o que posso fazer. Além de seguir a passos lentos em direção ao meu ganha pão: o buracão. Mesmo que quisesse seguir em passos céleres, não conseguiria. O estômago vazio me impede. Então, ao escutar os roncos do meu estômago, uso de criatividade: finjo que estou a ouvir o ronco do motor de um carro, um carrão que estou a guiar por uma estrada deserta, lisa e reta e, assim, absorto nessa idéia, chego ao meu destino sem sentir tanto o esforço físico.

Fuço. Reviro. Refuço. Hoje está difícil. Quarta-feira é um dos piores dias. Melhores são as segundas e as quintas. Nas segundas, vem o lixo dos finais de semana, principalmente a comida, restos da comilança dos sábados e dos domingos. Nas quintas, vêm os objetos danificados, as revistas com notícias obsoletas, as roupas fora de moda ou com furinhos de traça: tudo fruto do trabalho do meio de semana das empregadas fazendo a limpa na casa, abrindo espaço nos guarda-roupas, nas estantes e nos armários pras novas aquisições dos privilegiados lares daqueles que levam uma vida economicamente estável.

Quarta-feira é realmente um dia ruim. Mas se não me imponho o compromisso de vir todos os dias aqui pro buracão, o que acontece é que fico lá, feito um chorão, no alto do morro, remoendo minha fraqueza e a minha miséria sob a sombra de um salgueiro, que é onde eu vivo e sofro nos dias de chuva, quando então corro (não é bem correr, porque não agüentaria) me esconder sob as marquises do centro da cidade (apesar de que nesta cidade faz muito calor e quase não chove a maior parte do ano, então dá pra levar assim, numa boa, debaixo da árvore). Como eu estava dizendo: me obrigo a vir aqui todos os dias, porque há sempre o que se aproveitar (ou reaproveitar) neste lugar. Hoje, por exemplo, estou descalço. Faz hoje uma semana que estou nu dos pés. Por estes dias está difícil achar algo que me sirva. Ou que fique um pouco apertado, ao menos. Calço quarenta e cinco. Quase ninguém calça quarenta e cinco. Diríamos que, neste caso, quarenta e cinco é o meu número de azar. Porém, meu faro me diz (e nisso o meu faro acostumado a este local não falha) pra que eu seja pertinaz. Que ainda são dez horas da manhã. A cidade é grande, muito lixo há de chegar. Enquanto isso vou recolhendo (às vezes disputando no tapa com mulheres e crianças) aqui e ali umas cascas de banana, abacate, abobrinha, nacos de peixe podre, sebo de carne vermelha. A sopa até que vai ser razoável hoje, apesar de quarta-feira.

Bem disse eu que meu faro não me trai. Ali adiante, a poucos metros de mim, William, aquele negro alto e corcunda, magricela filhodamãe, acaba de achar um par de sandálias, prateado, tamanho grande, que com certeza irá calçar-lhe tranqüilamente (ele calça uns quarenta e quatro) aqueles pés rachados e bichados.

Vou me achegando, encarnando o espírito do bom comerciante, do tipo que adquire um produto por merreca e o revende pelo triplo, o quádruplo, o sêxtuplo do preço. A sacolinha de alimentos de William está vazia. E quase sempre está assim. Pois apesar de grande, William é um parvo e também muito lento pra disputar restos de comida, principalmente com crianças. Ele acaba de experimentar o par de sandálias, novinho. Vendo mais de perto, confirmo minha suposição: o par de sandálias prateado que William tem nos pés possui um ornamento muito particular: duas asinhas em cada pé, na altura do calcanhar. Essas sandálias, certamente, deviam fazer parte de uma fantasia de escola de samba. Faço, pois, minha oferta de troca: os alimentos que consegui pelo par de sandálias. William grunhe algumas palavras e, sem demora (sempre levo vantagem com William, que oferece pouca resistência em ser passado pra trás), me entrega as sandálias em troca das cascas de abobrinha e um naco de peixe podre. Odeio abobrinha e o peixe nem sequer um gato famélico conseguiria devorar sem pôr as tripas de fora. Que se danem as tripas do William. Saio feliz com a minha mais nova aquisição. Volto pro morro e me sento sob a sombra do salgueiro e fico a admirar por horas o elegante calçado prateado com asinhas.

Ponho água pra ferver. Quando as gotículas de fervura no fundo da lata de tinta (que me serve de panela) começam a surgir, vou jogando, pacientemente, primeiro as cascas de banana, depois as de abacate e, por fim, já com água na boca, o sebo de carne vermelha. Vai sem tempero mesmo, feito a vida de um miserável, sem sal — e também sem açúcar. Enquanto vou mexendo meu caldo no fogo, fico a observar as danadinhas, lá, prateadas, sobre a bancada de madeira (que construí com madeira de caixotes de feira). Tenho vontade de pô-las nos pés. Contudo, mesmo descalço e com os pés esfolados e repletos de bolhas de tanto andar em contato com o asfalto quente e as calçadas ásperas, tenho dó de vesti-las e gastá-las. Fico no dilema: visto, não visto. Então, não resisto, vou até lá e as coloco um pouquinho nos pés. E rapidamente as tiro. Dou uma limpadinha. Uma polida com minha camiseta rota e sebenta e as recoloco sobre a bancada. Volto a mexer meu ensopado. E a admirar a maravilha de calçado, meio que de longe.

Uma fraqueza terrível me acomete. Absorto no redemoinho que o pedaço de pau com que mexo o caldo faz na fervura, minha cabeça começa a girar. E o mundo em volta também. Torpor. Continuo mexendo o caldo ralo, lentamente. O sebo de carne é muito duro, tiro-o do ensopado, embrulho num plastiquinho e assim o reaproveitarei amanhã. Provo do caldo. Sem sal, impossível a pressão arterial subir. Entorno o líquido ainda fervendo na caneca. Dou um gole. Outro. E outro. A pressão ainda baixa. O negócio é dormir. Me deito sob a sombra do salgueiro e admiro um pouco mais meu lindo par de sandálias prateado. Adormeço. [é de tarde, uma tarde como esta de hoje, ensolarada, quente, chego exausto do lixão e sobre a bancada de madeira encontro um par de sandálias prateado com asinhas. após uns instantes, as asinhas começam a se agitar feito as de um beija-flor. céleres. mesmo um tanto espantado, admirado da beleza e estranheza das sandálias, as coloco nos pés. quando o faço, sinto que meu corpo começa a flutuar, e que se eu quiser posso sair voando; no entanto, a sensação de vôo, de liberdade, seguida de acrofobia, me faz voltar atrás, tirar as sandálias dos pés e recolocá-las de volta sobre a bancada. não tenho coragem de voltar a vesti-las, mesmo sabendo que elas podem me fazer voar, me tirar os pés do chão e colocar definitivamente minha cabeça nas nuvens, distante de todos os reveses da vida aqui embaixo. mas fico travado. medrando. plantado no chão. enraizado na miséria]. Desperto aborrecido comigo mesmo. Um otário, recalcado, até em sonho.

Fome e sede constantemente me acometem, não dão trégua. Sinto vertigens. As pernas bambas, vou em busca de um pouco de água no córrego infecto que fica ali embaixo, aos pés do morro. Por garantia, me certifico: as belezinhas ainda estão ali, sobre a bancada. E como no meu sonho elas parecem ter acabado de bater as asinhas. Só pode ser a fome e a sugestão do sonho. Só isso. Olho-as de novo. As asinhas se agitam mais uma vez. Preciso buscar água e tomar mais um pouco daquele caldo ralo, depois dormir outro tanto. Enquanto a gente dorme, o nosso corpo vai se alimentando da gordura dele próprio quando não se tem comida, aí parece que acordamos mais fortes do que quando dormimos. Contudo, já não tenho mais gorduras pra queimar enquanto durmo.

Na descida, perco o controle, as pernas trançam. Saio rolando morro abaixo. Até a margem do riacho. Um curso de água marrom, fétido. Tudo bem, a gente sempre ferve a água, toma e depois vê em que doença dá.

Enquanto encho minha lata d’água, posso ver, de modo difuso, por causa da sujeira do riacho, uma figura alta e corcunda passar por trás de mim. Olho pra trás. É William. Que vai subindo o morro, com um pacote na mão, em direção ao salgueiro. O que será que o maldito quer? Renegociar? Isso não é típico desse parvo. Raríssimas são as vezes em que ele vem pra estas bandas. E agora aparece assim, de chofre. Grito o nome dele. Ele se vira pra mim, grunhe algumas palavras e continua seu trajeto. Não entendo nada do que ele diz e tento segui-lo. Mas não tenho forças e esse desgraçado desse negro parece incansável, mesmo sem ter comido nada como sempre. Tento forçar os passos. Correr. A subida é íngreme. O sol está bem de frente pros meus olhos. As pernas afrouxam novamente. Me deixo cair e fico olhando lá pra cima. Maldito William. Forço a visão no alto do morro. Não dá. O sol me cega. Baixo os olhos. Fecho-os. Um breu só. Então, sinto um vento passando sobre mim. E de novo. Sobre as minhas costas. Parece uma ave gigante, um abutre dando um vôo rasante, querendo devorar minha carcaça. Maldito William, grito, com a voz roufenha. Protejo a cabeça. O abutre retorna. Outro rasante. Mais um. Agora o bicho dispara uma gargalhada, uma gargalhada filhadamãe, e de repente dá um tempo, cessa o ataque e eu posso subir lentamente, a visão turva, até o alto do morro. Sentado sob a sombra do salgueiro, minha vista vai se recompondo. Olhando em direção à bancada, não vejo mais as sandálias prateadas. Apenas uma sacola. A sacola infecta de William. Maldito William. Me devolveu as cascas de abobrinha e o naco de peixe podre. Odeio mortalmente abobrinha e peixe. Fazer o quê? Acendo o fogo. Começo a ferver novamente meu caldo. Retiro do plástico o sebo de carne vermelha. A contragosto, jogo na fervura as cascas de abobrinha e o peixe podre. Um pouco mais de sustância. Entorno o caldo na vasilha. Uma. Duas. Três colheradas. Vou colocando os bofes pra fora enquanto William segue com seu espetáculo aéreo, se distanciando, sumindo no céu, dando sonoras gargalhadas.

Paulo Sandrini

É autor de Códice d’incríveis objetos & histórias de lebensraum e mestrando em Estudos literários (UFPR).

Rascunho