Todas as xícaras de minha avó, porcelana francesa, apresentavam a asa quebrada. Eu ardia de frio ao entrar na casa amarela de esquina. Medo eufórico, de criança escovando um cavalo. Medo do coice, do imprevisível. Não havia olho mágico. Pelo estilhaço da porta, identificavam-se as visitas. Não consertaram o vidro, que apressava a pupila até a rua. Os móveis antigos, descascados. O pó e a luz se embaralhavam a ponto de serem derivados do leite. Uma cidade submersa, enluarada de insetos. De noite, ratos corriam no assoalho. De dia, os primos destruíam a rala nobreza do piano, do lustre e das mesas do século passado. Meu avô paterno cumprimentava e era toda sua fala. Minha avó vivia deitada na cama. Na despensa, chocolate bis e aspirina, casal que completava bodas de ouro. Havia algo libertino na infância, uma depravação contida, um balbucio desregrado. As primas cresciam as pernas e os seios de repente no sofá verde. Desabotoavam as sandálias e ficavam com as pernas cruzadas, trocando de posição com lentidão. No chão, espiava o papel jornal das suas coxas, o escuro das fotos. Passavam a língua nos lábios para provar o suor e o gesto involuntário me excitava. Qualquer gesto involuntário excita. Banho frio me esperava no fim da tarde, o chuveiro não funcionava. Os familiares usavam talco e não compreendia por que as crianças tinham que ter cheiro de velhos. O cheiro doce de velhos. O talco me irritava, pela asma. A vó doente dizia: “sabonete não é suficiente, guri”. E enchia meu pescoço com o tapete branco. Faltava ar para revidar. A casa amarela tinha cílios nas janelas: dez gaiolas balançavam. Era impraticável conversar na sala. Os pássaros ligavam alto o volume de suas plumas. O alarido alpistava. As aves disputavam o vento que sobrava, pulavam freneticamente nos trapézios, enfurecidas, ariscas. Éramos hóspedes daqueles pássaros, não o contrário. Eles ameaçavam, cobravam espaço, mandavam-nos ir embora. O pátio suspirava. O pátio e suas patas presas no abacateiro. Comia bolachas com sal em latas de alumínio. Comia sem ouvidos. As bolachas nasciam pisadas. Farelos entravam nas unhas. Meu vô era bonito e não precisava falar. Minha vó era feia e não parava de falar. Aquela residência carecia de horários, almoçava às 4 horas da tarde, jantava à meia-noite e dormia quando as pessoas desapareciam. Tudo era proibido. Tudo era permitido depois de ser proibido. As escadas levavam a um quarto fechado. Contavam a história de que ali vivia uma tia solteira, que foi abandonada no altar. O vexame a enlouquecera. Não mais tirou o vestido de noiva. Permanecia sem roupa de baixo, os pêlos à mostra no tecido transparente, com a grinalda na cabeça e um olhar satânico, esperando que alguém se aproximasse da porta. Qualquer um, para se livrar do par intocado de alianças. Quem entrasse naquela escuridão não voltaria inteiro. Nem pela metade. Imaginei tanto seu rosto que sou capaz de reconhecê-la. Ela freqüentou minhas primeiras ereções.
Os pássaros morreram em um único dia, sincronizados. Dizem que foi veneno de rato, mas os ratos continuavam marchando no assoalho. Veneno de rato mata só passarinho? Ou o passarinho dentro do rato? Será que os ratos voam? Na casa amarela, não duvidava. Havia muito escuro para treinar asas. Os pássaros morreram em um único minuto, e o barulho ensurdecedor permaneceu o mesmo sem eles. Havia muito eco para voltar. O vazio ardia. O odor de palha e papel molhado aumentou na escassez. Os pássaros não têm ossos para virar fantasmas. As pipas são os fantasmas dos pássaros. O vô não abaixou as gaiolas, como um terno no cabide, como um chapéu na mesa, como uma bíblia em sua gaveta esquerda, como um revólver em sua gaveta direita, como o chocolate bis e a aspirina na despensa. As gaiolas foram os ossos da casa amarela da esquina. Ninguém me ensinou a assobiar. A casa amarela subiu o que pôde, uma pipa enrolada na luz.
Todas as xícaras de minha avó, porcelana francesa, apresentavam a asa quebrada. Dava uma pena ver as peças trincadas. Perguntei para vó quem fez aquele estrago, louco para condenar um parente e conquistar a intimidade da tristeza. A vó riu sozinha: “fui eu!”. Pegou uma chave pequeníssima, presa em seu colar, e abriu a gaveta a mostrar uma pilha de asas de xícaras. “Assim as xícaras nunca serão roubadas.”