As aventuras de Nicolau & Ricardo, detetives

Conto de Mayrant Gallo
Ilustração: Tereza Yamashita
01/02/2009

1. Desperdício
O crime aconteceu ao anoitecer, na garagem de um imponente edifício da Graça. Nicolau e Ricardo acorreram imediatamente, mal a polícia recebeu o chamado. Pegaram o corpo ainda morno. Uma mulher, jovem, bonita, só com a peça superior do biquíni. Voltava da praia. Entre os seios, dois buracos vermelhos. O assassino avançara o carro contra o portão da garagem e fugira.

Ricardo ficou olhando a pele branca e macia. Depois parou um dos policiais que transitavam pela garagem e perguntou, sério:

“Sabe se houve estupro?”

“Parece que não”, respondeu o outro, sem hesitar.

“Que desperdício!”

“É…”

E os dois ficaram ali, com os olhos cravados na mulher, sonhando.

2. Sexta-feira à noite, depois de tudo
Nicolau e Ricardo acabaram de solucionar um longo e difícil caso. Chegam a um restaurante para comemorar e, já acomodados à mesa, telefonam às suas mulheres. Nicolau é casado; Ricardo, noivo. Não estão em casa. Por um instante parecem desanimados, mas logo se recuperam.

“Marina hoje tem analista”, diz Nicolau.

“O analista hoje tem Sônia”, replica Ricardo.

3. O fugitivo
Nicolau e Ricardo perseguem um delinqüente que, de súbito, à porta da delegacia, escapou de suas mãos.

Depois de uma quadra de perseguição e fuga em meio ao trânsito de pessoas e carros, Nicolau, que é mais velho e há tempos esqueceu os exercícios físicos, pára para tomar fôlego. Ricardo, que ainda poderia continuar, faz a mesma coisa. E ficam os dois, curvados com as mãos nos joelhos, olhando o chão e respirando. Ouve-se um alarido de freios e em seguida o baque surdo de um impacto. Ricardo sorri. Correm na direção do acidente.

“Punição!”, diz Ricardo, certo de que a vítima foi o fugitivo.

Não. Foi uma mãe, com seu bebê. Este, sobre um tapete vermelho, ainda treme a mãozinha (não se sabe até quando), enquanto a mãe, caída na calçada, contempla a vitrine de uma loja com o olhar vítreo.

Ao longe, no fim da rua, o fugitivo ainda corre…

4. Nepotismo
Nicolau e Ricardo foram chamados para resolver um caso numa cidade do interior — Póci. A cidade é tão pequena que não tem delegacia. Quer dizer, a delegacia funciona num anexo da prefeitura, também residência do prefeito.

“E onde está o delegado?”, perguntou Nicolau.

“Sou eu mesmo”, respondeu o prefeito.

Nicolau e Ricardo se entreolharam.

“E o corpo policial? O senhor tem um corpo policial, não tem?”, perguntou Ricardo.

“Tenho sim, minha guarda pessoal, formada pelos meus três filhos.”

Novamente os olhares dos detetives se encontraram.

“E afinal quem morreu?”, suspirou Nicolau.

“Minha mulher.”

“Sua mulher…?”

“É.”

“Como?”, inquiriu Ricardo.

“Assim”, o prefeito passou o dedo no pescoço, provavelmente querendo dizer: garganta cortada.

“E quem seria o assassino?”, Ricardo de novo.

“Dizem que sou eu”, o prefeito confessou, com naturalidade.

Nicolau e Ricardo pularam do sofá, como se alfinetados nos subúrbios… Houve um silêncio constrangedor, e que os maus autores denominariam pesado. Os dois olhavam fixamente o prefeito, que lhes devolvia o espanto, impassível.

“E onde vamos ficar?”, Nicolau perguntou, conformado.

“No hotel.”

Já sem paciência, Ricardo aumentou o tom de voz: “E onde fica o hotel?”

“Aqui mesmo”, e o prefeito fez um largo movimento de queixo em direção à escada, que conduzia ao segundo andar da prefeitura…

5. Balanço de Verão
Nicolau e Ricardo querem férias, mas o crime não pára. Nicolau e Ricardo estão cansados, mas os criminosos tiram energia do sol e se renovam como insetos. Nicolau e Ricardo gostariam de passar três semanas na praia vivendo só de vento e mar, mas os criminosos preferem prensar cédulas e contar papelotes. Nicolau e Ricardo gostariam de ir para a cama todas as noites à mesma hora e amar suas mulheres, mas os criminosos passam as noites em claro e, firmes como rochas, volúveis como água, só raramente cedem aos encantos de um ventre. Nicolau e Ricardo acham que, no fim das contas, pesados os extremos, os criminosos levam vantagem.

“Talvez até sejam mais felizes…”, Nicolau reflete.

“Livres, sem dúvida”, conclui Ricardo.

6. Rotina
Ao sol forte da manhã, Nicolau e Ricardo desviraram o corpo jogado de bruços sobre as pedras ainda úmidas de água salgada. Pela abertura do vestido, viram o pênis.

“Opa, mas é um homem!”, surpreendeu-se Nicolau.

“Menos um”, ironizou Ricardo.

7. A certeza
Nicolau e Ricardo investigavam o assassinato de uma adolescente, recém-ingressa na universidade. Todas as pistas conduziam ao pai.

“Mas não foi ele”, disse Nicolau, com uma firmeza que fez Ricardo se calar.

De fato, ao fim de três dias de investigações, deteve-se um pretendente da moça, que, depois de assediá-la e ser preterido, a violentou e matou.

“Por que tinha certeza de que não era o pai?”, Ricardo perguntou, uma curiosidade juvenil no semblante.

Caía uma chuva fria e miúda, que, no entanto, não os impedia de caminhar lado a lado. Na rua deserta e mal-iluminada a noite era triste. Nicolau falou sem olhar o amigo:

“Ele não era o pai… Só no papel… Não seria incesto. Cê sabe, depois de Freud ficamos conscientes.”

8. Interlúdio
Nicolau e Ricardo estão envolvidos com um misterioso crime de seqüestro. Mas Ricardo está apaixonado… Nicolau chega e pergunta como estão as coisas, como vai o caso.

E Ricardo, distraído:

“Ela me ama…”

9. O detalhe
A Páscoa de Nicolau e Ricardo foi interrompida pelo assassinato do poeta Bidu Laranjeira. O principal suspeito: o colérico estudante e aspirante a crítico literário Lu Renard, de tantas tertúlias com o falecido.

Ricardo (com um sestro de desprezo nos lábios): “Não foi ele”.

Nicolau (um ponto de interrogação em busca de uma frase): “?”

Ricardo (com ar superior, explicando): “Seria como eliminar a máquina de refrigerante, o pipoqueiro, o sorveteiro; atirar no lixo o brinquedo querido… Não, não foi ele”.

De fato, dias depois, o assassino: uma mulher. Bem, quase… Por um detalhe.

10. Galinhas
Nicolau e Ricardo interrogavam uma velha senhora. Ela estava falando, ou melhor, discursando, com todas as pausas perdidas de sua geração:

“Eu o vi, da última vez, olhando as galinhas. Diante das gaiolas, a todas examinava atento e impassível. Não sei o que pretendia, se comprá-las ou retê-las na mente… Mas, de qualquer modo, é certo, fosse o que fosse, seria a vida de novo para ele que desde moço e para sempre se viu viúvo…”

“Bem, garanto que as galinhas que ele violentou e degolou não eram essas…”, comentou Ricardo, com sarcasmo.

“Não entendo…”, a mulher disse, encabulada.

“Deixe pra lá, senhora. Era só isso”, encerrou Nicolau.

11. Acordo noturno
Nicolau e Ricardo voltavam de madrugada pela estrada deserta. Ricardo dirigia sonolento, enquanto Nicolau fazia o impossível para manter o parceiro acordado. Na escuridão em volta, só raramente uma luz cortava o céu, sem que os dois a percebessem nem fizessem qualquer pedido — não eram mais crianças, não se deixavam iludir. A única estação de rádio cujo sinal chegava até eles acabara de sair do ar. Nicolau consultou o relógio, e foi neste precioso momento que avistaram a mulher, mas era impossível parar… O baque, mais físico que auditivo, os fez estremecer: Bronc! Desceram e comprovaram que a vítima estava no fim, morrendo, que não havia nada que pudesse amenizar seu sofrimento, nem o deles. Então voltaram ao carro e foram embora. Mais adiante, um grave acidente — do qual não se viam senão os veículos, com os faróis ainda acesos, emborcados no acostamento — justificava a atitude da mulher lá atrás, a caminhar tonta pelo meio da pista. Eles prosseguiram velozes, sem se voltar, e nunca mais falaram daquele episódio. Por mais de um mês, nenhum dos dois abriu os jornais.

12. Pontos íntimos
Nicolau e Ricardo investigavam o enforcamento do gerente de uma loja de moda íntima. O crime acontecera depois do expediente, no mezanino da loja, num dos shopping centers mais tradicionais de Salvador. O corpo foi encontrado nu, ainda com vestígios de uso em seu instrumento… A arma do crime? Ligas.

“Assim até eu gostaria de morrer!”, comentou Ricardo.

Nicolau não respondeu. Observava a cena, investigava-a. Depois de um tempo, um longo tempo, retrucou:

“Se o assassino foi uma mulher, vá lá! Mas há vestígios de esperma em dois outros pontos — um bem íntimo…”

13. Fim do diálogo entre dois homens
Nicolau e Ricardo entram num boteco da Barra, pedem uma bebida e tentam relaxar. Não estão para muita conversa. Tiveram um dia difícil, cheio de interrogatórios inúteis, de pistas falsas, de testemunhas dissimuladas, de suspeitos sarcásticos. Meio chutado, embora o tom grave, quase filosófico, Nicolau diz:

“Há no fundo de toda mulher o desejo repulsivo de bancar a prostituta”.

“Mesmo sua mãe, sua mulher, suas filhas?”, Ricardo brinca.

Nicolau se levanta bruscamente, não diz uma palavra sequer e, sem olhar o amigo, sai. São os nervos. Os nervos. Há três semanas que Nicolau e Ricardo chafurdam num caso de difícil solução, por causa do persistente silêncio de algumas mulheres.

Madrugada. As primeiras manchas de sol.

O dono do boteco baixa com estrépito uma das portas de aço, e Ricardo ainda está lá, diante do seu copo…

14. O exame
Outro crime na cidade. O desaparecimento de um grupo de turistas, dos quais só se encontrou um único braço, jogado no lixo e já meio comido pelos insetos.

“Carne branca” — é Ricardo quem fala, em sua mulatice.

“Bonita… nova… de mulher…”, Nicolau continua.

E não há nada neste mundo, naquele momento, que seja mais preciso, mais exato, que a imaginação daqueles dois.

15. O engano
Corria. Corria. Às vezes parava e, detrás de um poste ou de uma parede, revidava os tiros. Não saberia dizer se acertou alguém, não viu cair nenhum de seus perseguidores.

Atravessou a linha do trem, entrou pelo mato, chegou a um muro — e foi então que sentiu a picada, só isso, uma picada, seguida de uma expansão quente, e de uma sucessão de imagens, intercaladas pela fisionomia irreal daqueles dois policiais que o perseguiam.

Nem percebeu que estava no chão, imóvel. Ouviu passos, gritos de que estava caído, alvejado e:

— Esta morrendo… — disse o policial mais velho.

— É — resmungou o outro, que — lembrou de repente — chamava-se Ricardo da Luz.

A primeira mulher que amou. O rosto de sua mãe. O quarto onde se escondia com seus gibis. Ondas. Pipas. A fanfarra de pombos diante do Elevador Lacerda… O coelho de sua irmã. Morto.

O nada. A sensação inequívoca de estar nascendo.

16. Perseguição
Na BR-324, Nicolau e Ricardo seguem a pista de um escroque. Param num restaurante à beira da estrada e bebem, enquanto o observam. Mas não observam o suficiente, pois não vêem quando o bandido foge no carro deles…

FIM DA PRIMEIRA TEMPORADA

Mayrant Gallo

É autor de O inédito de Kafka (CosacNaify, 2003).

Rascunho