Ao pôr-do-sol no Guaíba

Conto de Walmor Santos
Walmor Santos, autor de “Contestado”
01/04/2002

Saíram abraçados do cine Baltimore. Foram rever o Titanic. Ela ainda tinha água nos olhos. Chovera pela manhã em Porto Alegre, mas a tarde reacendera o Sol de verão. Caminhavam devagar, um só corpo, parando somente para novos beijos. Ele aparentava uns vinte e quatro anos e ela mal ultrapassara os treze, talvez catorze. Se enganasse bem, quinze. Enquanto ele assoviava a canção do filme, ela deambulava sonhando com o naufrágio e com ele lhe resgatando da água gelada. Agradava-lhe aquele abraço de homem feito, o cheiro másculo, a camiseta sem mangas que lhe amostrava os braços musculosos e os bíceps salientes. Ele a conduzia, a pé, pelo corredor da avenida Oswaldo Aranha, entre as palmeiras tesas. Aonde vamos? ela perguntou e ele não respondeu, pois não soube se ela lhe perguntava indecisa ou se o convidava para avançar. Decidiu-se por atravessar a avenida, beirar o Parque Farroupilha. Talvez desviasse a rota. Sentiu que ela resistia. Então, contornaram o câmpus central da Universidade e prosseguiram pela Perimetral. Muito depois, cansados, aportaram na Usina do Gasômetro. Mas ele ainda agia como se caminhara um nada e estivesse apto a enfrentar um longo desafio. Ela disse estou morta e ele emendou um ainda não, abraçando-a, erguendo-a do chão, fazendo-a girar com gritinhos e risos. Então ele apontou a chaminé, a qual se erguia fálica sobre a cidade. O Gapa a revestira com um preservativo. Ela perguntou o porquê daquilo. Ouvia a explicação que o sexo era a coisa mais maravilhosa que poderia acontecer às criaturas, porém, precisava ser feito com segurança e responsabilidade. A aids tá aí, ó! E eu trago camisinhas comigo, sempre. E mostrou a embalagem. E filhos são um pé-no-saco: só dão trabalho e despesa. Ela retrucou, num sorriso coquete: Ai, eu não sou assim! E olhou para o chão: Usas muito? Ele inspirou fundo, fez-se discreto: Não tanto quanto seria recomendável à saúde. Ela tornou a rir e socou-o no peito: bobo!

Prosseguiram, ele descrevendo as maravilhas do sexo e o indescritível prazer do orgasmo; ela, sentindo arrepios provocados pela brisa fresca que vinha do rio Guaíba e se espraiava em leves ondulações por sua pele líquida. Ela também suava um pouco, titubeando entre indecisa e afoita. Ele se inclinava cada vez mais sobre ela, desdobrando-se em abraços, beijos, afagos. Por fim, acharam um gramado limpo de lixo, coisas e gentes. Ele tirou a camiseta e a estendeu no chão. Ela disse: Sentirás frio. Ele desdenhou num movimento de ombros, retesando os músculos do peito: Depois, visto a camisinha. Riram. Ela repetiu: Bobo! Sentaram-se olhando a Ilha da Pintada na outra margem. Ele jogou pedrinhas na água, marulhando, rindo, e explicou que a penetração era assim natural como a pedra que penetra a água e vai repousar no leito. É, ela retrucou: e têm os girininhos que engravidam o ventre das águas. Ele sorriu: E isso seria ecológico ou ginecológico? Continuaram rindo, enquanto ele retirava do bolso o pacote de preservativos: Esse vem lubrificado. Não machuca a mulher e garante a felicidade sem preocupações. E deitou-se com dedos entrelaçados atrás da cabeça. Ela deu de ombros: Não sei! Ele a puxou para a horizontal, oferecendo-lhe o braço musculoso como travesseiro. Ela olhou para o céu azul: Nem parece que choveu há pouco! E deixou-se envolver pela ternura daquele azul, como se aquilo fosse um vestido de seda que a desnudasse dos medos. Sentiu-se segura no abraço que a apertava. Quente esta tarde, ela disse. Respirou fundo e sentiu o cheiro da ventura, o indiscritível prazer do perigo, da audácia. Afinal, perguntou-se interiormente: Para que serve a virgindade se não para os homens contarem vantagem? Também pensou nas amigas sussurrando aventuras. Depois, disse, que quando casasse, não usaria branco, porque não desejava casar virgem. Usaria, sim, um longuíssimo vestido azul, do tamanho desta tarde. E ele afiançou que seria um casamento inesquecível. E acrescentou, mordiscando-lhe a veia do pescoço: Como inesquecível será este dia. Ela ainda guardava-se no azul quando ele deitou a perna sobre as dela, e ela se percebeu facilitando caminhos como se precisasse de ar para quebrar os calores internos. Ele a acariciava os braços, escorregava quase líquido em direção às costelas, contornava o ombro e chegou ao peito com beijos; ela achou que o muro da Mauá, se chovesse muito, seria inútil. Não tinha defesa alguma. Ele ergueu a blusa dela, da cintura para cima, e demorou-se admirando os seios ainda pequenos. Beijou-os tão suavemente que ela sentiu a percorrer-lhe o corpo uma carícia jamais experimentada antes. O fio do gemido que ela soltou, gatinha, foi mais de encorajamento do que receio, e o estimulou a avançar num silêncio quebrado pelo marulhar da água sob a carícia da brisa e que vinha morrer na areia e também pelo respirar sôfrego, opresso, cada vez mais acelerado, seguido pelo contínuo movimento do corpo sobre o dela. Isso, sim, a assustava e a obrigava a calar-se para não proteger-se dos deliberados riscos que desejava. Assim, agasalhou a mão que lhe descia ao ventre, entre a calcinha e a pele, enquanto as suas dividiam-se entre estreitar o corpo rijo que se moldava ao seu ou agarrar-se ao capim para maior firmeza. Então, ela, mais por preconceito do que por vontade, disse que era tarde, deveriam ir. Ele disse é cedo ainda, veja, o Sol se porá daqui a pouco e não vamos perder esse espetáculo, de jeito algum. Ela então viu que o céu já abandonava o inocente azul, raiando-se tão sangüíneo quanto seu rosto deveria estar. Sim, ele tem razão, é maravilhosa demais essa tarde no Porto dos Casais. E deixou-se ficar um pouco mais, recebendo as carícias da luz, da brisa, da paisagem. Ele ousava. Ela soube-se com sede. Muita sede. E ele esparramou-se ainda mais sobre ela, que o recebia com beijos nervosos, faceiros. Ela descobriu que seu corpo tinha movimentos que ainda desconhecia e deixou-se guiar instintivamente por eles. E revirou os olhos num abrir e fechar, como suas pernas souberam fazer. Surpreendida, ela deixou-se a olhar, quase distraída, a chaminé da Usina, que se erguia secular, desvirginando a tarde que sangrava sobre o Guaíba, tingindo-a de vermelho, esparramando sangue e sêmen sobre as ilhas, sobre as águas, entre eles, sobre a grama.

Quando tornaram a caminhar era noite. No rio, deslizava mansa a correnteza, trazendo histórias que imergiam e submergiam nas águas do tempo: histórias de gente, de praias, de ilhas e de povoados ribeirinhos. Cada qual com sua fantasia, seu drama. Sobre a cidade repintada de estrelas, o vestido da noite bailava ao ritmo da brisa. A Lua cheia redistribuía o luminoso amor que o Sol lhe fecundava. Seria uma noite fresca para dormir. Todos os sonhos são possíveis. De janela aberta, ela dormiu naquela noite, enquanto ele, com um sorriso mal desenhado no rosto, sonhava com um jogo de futebol.

Walmor Santos

É escritor, poeta e editor da WS. É autor dos livros O paraíso é no céu da sua boca, Coração passarinho, Aqueles que iriam morrer e Arte de enganar o medo, entre outros.

Rascunho