Antes do circo

Conto de Jerônimo Teixeira
01/04/2002

A luz era pouca. O domador pediu que eu permanecesse onde estava enquanto ele ia à procura da lâmpada. O ar carecia do frescor prometido pela penumbra: cheirava a serragem úmida e esterco. Uns restos sujos de sol entravam pelas costuras da lona, deixando mal e mal divisar uma forma negra no chão, poucos passos à minha frente. A respiração anunciou-o antes que eu pudesse vê-lo: inspirava e expirava com um ruído prolongado e dificultoso, a barraca toda ela um alvéolo tísico, expandindo e contraindo ao ritmo daquele ronco encatarrado.

A luz acendeu-se. Era uma lâmpada precária pendendo de um fio que descia rente ao mastro central. O domador deslocou-a para que incidisse diretamente sobre ele. Os chifres conservavam um poder que o corpo não era mais capaz de sustentar. Enormes, desproporcionais em relação à cabeça; os cornos arqueavam-se, simétricos, as extremidades tendendo a um ponto virtual no espaço onde a natureza esquecera de fechar uma elipse perfeita. O osso pérola-amarelado brotava do crânio com a força vegetal de um parasita. As orelhas abanavam intermitentes para espantar as varejeiras. Entre a orelha esquerda e a base do chifre havia uma ferida, uma bicheira onde as moscas se refestelavam — impossível discernir se a agitação necrófaga dos insetos se dava à superfície ou embaixo do couro. Os olhos tinham uma permanente água turva estagnada no cristalino, e só o focinho mucoso denunciava vida, as narinas alargando-se regularmente com uma obscena sede de ar. Da boca pendia um fio de baba ruminante que se perdia sob os pêlos do tórax — ao longo dos braços, o pêlo rareava progressivamente, até desaparecer por completo nas mãos, encarquilhadas como raízes de uma árvore muito, muito velha, as unhas compridas, duras, sujas de terra. As costelas desenhavam-se sob o couro negro, que se tornava mais claro e liso à medida que descia pelo abdômen cavo e sem mácula, e deste até o sexo, um pênis descomunal descansando sobre o escroto arroxeado. A pele pálida das pernas aderia aos ossos como um papel engordurado.

A luz não alcançava dos joelhos para baixo, zona de obscuridade onde não se saberia se pés ou cascos. Perguntei ao domador onde o tinha achado. Comprei de outro circo, respondeu. Que comprou de outro circo, que comprou de outro, de outro, sempre de outro. E antes?, pensei, e antes dos circos? Mas o domador não era nascido antes dos circos, e nem eu, e então resolvi perguntar só o que ele poderia responder, e só o que me interessava saber.

“Quanto o senhor quer por ele?”

Jerônimo Teixeira

Nasceu em Montenegro (RS), em 1968. Jornalista, atuou no jornal Zero Hora e hoje colabora com as revistas Superinteressante e Veja. É mestre em Letras pela PUCRS, com dissertação sobre Carlos Drummond de Andrade. Publicou a novela As Horas Podres (Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997). Recebeu a Bolsa para Escritores Brasileiros com Obras em Fase de Conclusão, da Fundação Biblioteca Nacional, em 2000, pelo livro de contos Antes do circo (inédito).

Rascunho