Anacoluto do princípio ao fim

Fragmento do romance inédito de Walter Galvani
01/07/2003

É preciso dar oportunidades iguais a todos os seres humanos, foi a minha nova e fundamental assertiva, imaginando que ninguém ainda a teria formulado. Pelo menos eu não lera, nem ouvira em nenhum programa partidário. Isto sim honraria meu nome, não digo por ser Anacoluto, mas qualquer orador construiria uma catedral sobre uma afirmação assim tão prometedora. Como dar oportunidade a todos os seres humanos? Iguais para todos ou proporcionais à sua capacidade? Como corrigir os desvios, exageros e as disparidades que logo se restabeleceriam?

Claro, peço que não me julguem ignorante ou mal informado. Sei muito bem que o lema que coloquei no papel provinha da Revolução Francesa, e que a modificação proposta, substituindo Fraternidade por Humanidade, fora idéia dos revolucionários da república de Piratini na metade do século XIX. Tampouco pense-se que a idéia de “oportunidades iguais para todos os seres humanos” soava como novidade. Eu sabia que era um truísmo vulgar. Mas qual tinha sido o partido político ou governo que propusera tal revolução?

Já me julgava um líder. Ainda mais depois da cerimônia daquele casamento. Com tudo isso eu me julgava correspondendo efetivamente a toda a confiança que em mim pudessem depositar, mesmo levando em conta minha inconfundível posição de proprietário de terras, imóveis e desde a festa, muitos anéis… Quero dizer, três, vistosos e caros. Aliás, um velho provérbio português dizia que “vão-se os anéis, ficam os dedos”. Eu no entanto, valorizava-os tanto, desde o casamento da filha do Senhor Pigafé, quem diria, o futuro surpreendente! Como padrinho eu fora contemplado e usava permanentemente, no pai-de-todos, no anular e no minguinho, na mão esquerda, os tais anéis de prata e ouro. Fora uma cerimônia tão singular e significativa que para mim é como se a tivesse sonhado.

A filha do Sr. Pigafé tinha menos de dezenove anos, se tanto. Na época já não era mais moda casar-se com o que se dizia “tão pouca idade, tanto que ainda teria pela frente”. Mas casou-se. A festa aconteceu no jardim da residência dos Pigafé, um gramado que se estendia e culminava numa curva ascendente, onde instalaram o tablado para o juiz de paz, os padrinhos, o livro de registros e os noivos, naturalmente.

Noivo e noiva vestidos de branco, ela com um ramalhete de multicoloridas flores do campo, ele, mais austero, mas irradiando alegria por saber que além da bonita noiva, empalmava a partir daquele dia, várias léguas de campo que lhe permitiriam, bem aproveitadas, dormir com tranqüilidade e acordar sem pressa, quando o sol já estaria alto… Poderia sempre ficar até quanto quisesse na cama.

Foi então que o Sr. Pigafé se deu ao luxo máximo que até hoje arranca comentários despeitados dos adversários políticos, dos invejosos e das comadres da região: fez distribuir entre os padrinhos do casal — e eu, felizmente era um deles — e alguns amigos mais chegados, cuja seleção não sei como foi feita, anéis de prata e ouro que lembrariam a festa, junto com as alianças, também de ouro e também por ele oferecidas.

Durante a cerimônia correram o sapatinho da noiva para recolher presentes em dinheiro, uma tradição de imigrantes, mas com significado apenas simbólico para o jovem casal: fariam o primeiro rancho com aquelas cédulas, algumas novas, outras amassadas, todas significativas, ostensivamente depositadas pelos convidados que buscavam chamar a atenção dos demais e especialmente do Sr. Pigafé que circulava, indiferente, com um grande chapéu panamá a quebrar a dureza do protocolo que engessava a cerimônia.

Foi depois da celebração deste costume que nascera entre os descendentes de italianos que três garotas, com uma listinha escrita com a caligrafia orgulhosa do dono da casa em letras graúdas o suficiente para serem percebidas à distância, um pote nas mãos da mais bonita delas, destacada por uma tiara de brilhantes nos cabelos, circularam no meio da festa fazendo a distribuição dos tais anéis que significavam a estima do Sr. Pigafé e que até hoje carrego, agora mais por lembrança, antes como costume e distinção em meus dedos amarelecidos pelo tabaco.

O responsável pela organização toda, o Sr. Silveira, recolheu os brindes que sobraram e a lista dos que haviam sido distinguidos. Meu nome estava ali, eu sabia, bem no início, afinal, começando com o A. Isto queria dizer que eu era um dos privilegiados amigos do Sr. Pigafé, dono de toda aquela extensão de terra e mais outros bens que se acumulavam para proporcionar uma renda inimaginável para a maioria dos mortais que precisavam sobreviver dos seus escassos salários ou de pequenos trabalhos temporários. Bem, é claro que esses não estavam entre os presentes. Os noivos abriram exceção apenas para os colegas de escola, no caso de gente que não tivesse bens de raiz ou importância comercial ou política, social em suma.

Abrindo os olhos dava-me conta de que não estava dormindo e não sonhava. E hoje, cada vez que movimento os dedos da mão esquerda, mesmo com tudo o que se passou, percebo os tais anéis-lembrança do casamento. Custo a tirá-los e Rosa Pigafé nunca me cobrou isso. Às vezes sim, mas para uma limpeza, mais na mão do que nas jóias, e então preciso usar um sabonete para facilitar-lhes a saída, escorregando-as. Quanto mais custam a sair, mais me recordam a importância que tive na pequena aldeia e o quanto me custara sair de lá. Não pela consideração do Sr. Pigafé, que os tempos mudaram minha visão, mas o fato da minha posição haver me proporcionado aquela aproximação, que tanto me valeu então e no futuro. Na verdade, naquele vilarejo perdido, quase no fim do mundo, era uma enorme distinção. Ninguém sabia de onde havia saído a família Pigafé, quem era ele, sua esposa, a filha, enfim, qual era a origem do dinheiro, que profissão, se é que exercera alguma, se havia trabalhado alguma vez na vida. Mas de sua capacidade financeira ninguém duvidava. Consta que certa vez a folha de pagamentos dos funcionários da prefeitura ia atrasar. O prefeito foi, depois das dez da noite, à residência do Sr .Pigafé e de lá saiu com os recursos em espécie. Um pedido seu, era uma ordem, só que ele tinha o bom senso de nada pedir. Quando muito insinuava algum desejo, logo realizado, como o asfalto de um trecho de estrada ou uma linha telefônica. Recordando o que vi, à distância agora no tempo e no espaço, vejo que ele nem chegava a fazer um gesto e já corriam para atendê-lo, como se adivinhassem o que pretendia. Eu próprio, nas oportunidades que tive, procurei servi-lo fielmente. Até que um dia…

Walter Galvani

É autor de Informação ou morte (1972), Andanças e contradanças (1974), A noite do Quebra-Quebra (1993), e Nau Capitânia (1999), entre outros.

Rascunho