à gravidez da Márcia
(com aquela cobra verde que encontrei no pátio).
Ratos e Cobras, vejo ratos e cobras desde que passei a beber água demais. Três copos cada vez que quero um, água sempre fria. E é por todos os lados, a cada gole, todos os goles. A cada copo findo, vejo uma cobra no fundo. Quando não as encontro, me forço a vomitar o pânico de tê-las bebido. Raramente consigo algo além de choro. Os ratos me esperam à noite – e porque mesmo de luzes acesas, sinto-me melhor quando apagadas. Eles, também. Finjo que eles se apagam com a luz, e eles ficam fingindo isso, à espera de que eu durma. Resisto até que o sono, imitando um desmaio, me domine. De manhã, posso sentir que os ratos procuraram a minha boca. Se tive um sono contínuo, é com uma certeza angustiante que penso na possibilidade de eles terem entrado no meu estômago a vasculhar as coisas que ando comendo. Raramente, contudo, o sol desvela algum sinal deles. No silêncio em que a manhã se abre, posso senti-los dormindo muito perto, e tenho medo de que estejam dormindo tão perto que me seja dentro. Está na História: ratos sempre gostaram de nossos cantos escuros. Evito meus espelhos, escovo os dentes com força, bebo a água do enxágüe e espero que tudo se transforme no dilúvio deles. E mal sento no vaso, me dou descarga, afogo o nojo da noite. No mesmo redemoinho de águas, a manhã vai junto. Almoço fora, preferência às saladas, que toda carne é suspeita. Começou no que descobri em meu pátio, num período em que vomitava tudo o que comia. O depois do almoço era o depois de tudo.
Às tardinhas que inventava pra mim, eu me fazia sentar à varanda e me encolhia de frio esperando um momento divino: por entre as árvores, o sol deixava sobre a grama umas bolinhas de luz. De tanto imaginá-las, eu levava essas luzes para a cama. Sonhava poder tocá-las, guardá-las nos bolsos, esfregá-las nos seios como esponjas macias que me levariam, já em sonho, a um novo sono. Mas de repente as esponjas ganhavam unhas e dentes, e não só me acordavam do que eu iria dormir como do que eu estava dormindo enquanto sonhava. Por isto passei a beber tanta água: para acordar, ir ao banheiro, dormir de novo e sonhar com outra coisa. Sempre, todavia, o medo presente: que o mito, transfigurado, permanecesse nos novos sonhos. Houve uma tarde em que as bolas de luz que o sol deixava sobre a grama pareceram-me marmelos. Queria sonhar com os frutos esquecidos pelo sol, comer-lhes a luz e lembrar que fora no meu pátio que haviam sido colhidos. E que o sabor me fosse novo, como nova era a vontade de marmelo. Mas para isso, tinha de ser forte e evitar que meu sonho desse aos marmelos unhas e dentes. E se Ratos e Cobras vieram com os frutos, creio que fui inocente demais, me entregando a um apenas fascínio.
Ratos e Cobras, como tenho nojo de ratos e cobras. Ratos, já os via antes, e por eles jamais havia sentido algo além de receio, talvez medo. O mesmo acontecia com cobras. Mas agora, que passaram a surgir juntos, a sensação de tê-los na boca é insustentável. E creio mesmo que eliminar um é dar cabo do outro, como se da barriga dos ratos nascessem as cobras e dos ovos das cobras brotassem os ratos. Tentei fugir das torneiras para a água mineral fechada na fonte. Enchi um copo, mas nem cheguei a bebê-lo. Vacilei, olhando-o cheio e sabendo que as cobras se escondem onde nosso olho se engana. Isso faz com que eu as veja como água, e não as veja. Bolinhas de gás vêm subindo do fundo e, se não são ovos, acabam sendo. Fico apavorada de estar bebendo várias cobras no que bebo. Procuro vomitar, que é o que cobras naturalmente me suscitam. Mas como eliminá-las na saliva que cuspo, sem que se cuspa eu toda? Me parece impossível, embora quisesse, vomitar eu mesma, limpando o meu avesso até colocá-lo ao sol para secar. Difícil também é comer: ficam-me as sensações de que o que comi não sou eu quem o come: ratos, ratos já devem ter nidificado no meu estômago. Enquanto durmo, novos filhotes vêm ao mundo, e outros virão porque a comida é farta, e a fome é deles. Tantos ratos, tantas cobras e tantos medos secaram as plantas da casa. Expulsaram meu gato.
Ultimamente a água me causa tanto frio – e é porque a bebo incessante, e gelada, copos que deixo no congelador a criar uma fina película de gelo. É um frio que vem crescendo por dentro, e por isso me enrolo num cobertor para, à varanda, pensar meus marmelos. Mas o sol anda muito fraco, e os frutos que vi, de tão leves, não resistiriam na memória para que eu os comesse em sonho. Sob o chuveiro quente, procuro não pensar em nada, e as pontas dos pés me formigam num sinal alentador de que estou bem viva. Fecho os olhos e me concentro no bom que é o quente. Mas quando os abro, há sempre uma cobra que me vigia de um canto. Há sempre uma cobra que esfria a minha água. Os ratos, eles se aproveitam da névoa suspensa e se aninham nas roupas novas que escolhi para me esconder. Luto com eles e me visto do frio que me deixam, porque não suporto imaginar que os estou vestindo. Respirar me causa medo tão logo piso fora do banheiro. Respiro algo sujo, que o ar é o mesmo que os ratos respiram. Tem cheiro deles.
Hoje plantei flores em volta da casa e parecia que eu jardinava o inferno. Houve um momento, embora único, em que, pensando nas flores crescendo, esqueci meus Ratos e Cobras. Foram segundos apenas, mas que me deram uma sensação de sem-medo tão boa. E então percebi que Ratos e Cobras me haviam feito recuar a uma angústia tão presente, que só o que eu fazia era evitá-los. O tempo presente, o que vivo, renova-os a cada instante, tornando-os seres de eterno. Mas, se pude ver flores já crescidas, se pude soltar o ar com força, julgo ser uma resistência ao menos.
O que estou é perseguida, e é como se eu procurasse Ratos e Cobras por todos os cantos. É como se eu fugisse para não entregar algo que é meu de natureza. E se eu buscasse ser feliz de novo, teria feito da mesma forma. E em seguida a mesma fuga. Não devo arrepender-me do que me faz tão bem. Por que é que proibiram ser feliz? O arrependimento que me ensinaram, hoje sei, torna a vida mais cara.
Ratos e Cobras, desconfio, são pedras que a natureza me atira. E suportá-las é de um difícil tão doloroso, que fecho a minha casa e reduzo os meus dias dormindo mais cedo, cada vez mais cedo, até que não durmo. Os dias, vejo-os a partir de então se tornarem terrivelmente longos. É igual a fugir de um ponteiro do relógio: se não fujo, o ponteiro me alcança; se fujo demais, estou correndo de encontro, no outro lado da fuga. Não quero ficar no dia de hoje; não posso pular pra amanhã. Tento aceitar que tudo o de que preciso está em mim, e o que estou é de uma ausência dividida. Não sei se isso já existiu, mas sei que me existe: amei, e nisso pode incidir a culpa que não aceito. Amei amei amei, e foi de um amor todo inteiro todo certeza todo ele, a dois homens. Não dois homens numa vida, mas dois homens no mesmo instante, a cada instante. E o que quis, e o que me culpa, foi um homem que, entre os dois, não era nem um nem outro, nem ambos, mas alguém misterioso e fascinante entre eles. Alguém sussurro. Para tê-lo, não era necessário tê-los juntos, como aliás eu nunca os tive: bastava que eu fosse de um e logo arranjasse ser do outro para que, em casa, não sendo de nenhum deles, eu imaginasse um terceiro homem. A esse, sim, posso dizer que dei amor. Pelos nomes, e só pelos nomes eu os separava. Mas, secretamente, deitada na cama, as pernas brincado bicicleta no ar, eu pensava neles sem saber quem era quem. E o homem que do misturar dos dois eu fazia, agradava-me juntar as palavras e chamá-lo de Entreambos. Quando ele deitava entre as minhas pernas, eu dormia.
Não, nunca souberam um do outro, quanto mais daquele. Nunca consegui que se encontrassem e nunca tive a felicidade de o acaso preparar isso para mim. Creio mesmo que, como contrários que só eu atava, a presença de um afastava o outro. A minha luz e o meu escuro. Cheguei a combinar encontro com os dois, a caminhar um dia inteiro pela cidade agarrada ao braço de um deles, justamente por onde e quando o outro costumava passar. Não sei o que aconteceria se um encontrasse o outro, e isso nunca veio a acontecer. Talvez, os dois se descobrindo rivais, eles levassem embora aquela ilusão que, apesar de boa para mim, a qualquer pessoa pareceria suja a ponto de me atirarem Ratos e Cobras. Mas o único encontro dos dois continuou secreto, meus olhos fechados, toda eu aberta no que se abria. Penso que seria mesmo impossível colocá-los frente a frente, eu no meio: eram tão diferentes, que pertenciam a instantes nunca os mesmos. Cada um no seu nome, no seu cheiro – e eu querendo o cheiro único que ficava de uma mistura toda minha. É necessário fazer entender: era tão único e indivisível e sincero o meu amor. Tê-los juntos era enganá-los juntos, e isso talvez fizesse com que eu me sentisse culpada. Mas não é o que sinto. Não nego o que entendo por amor, embora Ratos e Cobras me vejam doente.
E quando um deles partiu para Minas, percebi instantaneamente que os dois haviam dividido o que eu vinha apaixonadamente inventando. O que ficou me procura; o outro sumiu nesse lugar de muitos morros. Fui a mistura deles, e, sem que jamais desconfiassem, imaginaram-se cada um o homem que fazia uma mulher feliz. E faziam, porque deles eu misturava um homem perfeito, um homem impossível, um homem muitos homens num homem. A menos que eu me desapaixonasse, nenhum deles, sozinho, me serviria.
Eles foram o único homem a que me permiti. Nunca amei a nenhum deles presente, mas que atire a primeira pedra quem nunca amou pedaços de uma pessoa. E se sei que é estranho, também sei que existe. E se não é amor, amor não me interessa – e, mesmo apedrejada, não quero.
Desde então, Ratos e Cobras, remorsos e culpas, cada mais freqüentes, me cercam. E entretanto insisto em não aceitar essa raiva, esse cuspe. pois vejo que amar de uma tal pureza e entrega como a minha, de uma tal felicidade de rir no escuro e esquecer como se chora, é de um sublime que me confesso ainda feliz. A mim coube isso: ser a mulher dividida a dois homens, sentir-se completa num único. Não me sinto a mulher que traiu um amor, porque num acaso do destino, amando dois homens, fui fiel a um outro. E se o homem que não foi a Minas eu não o quis, não foi por um motivo difícil de explicar. Apenas sinto que ele não seria meu, se não fossem meu. Qualquer um deles, sozinho, me daria, aí sim, a culpa de estar traindo Aquele que amo.
Caso eu voltasse a nascer, ia desejar não os ter conhecido. Mas sim, mas sempre, mas claro: desejaria de novo ter tido a felicidade de inventar alguém, e que ele fosse uma só pessoa, e real, e com um nome. Um homem, mesmo que sem beleza, a quem eu pudesse dar banho, pôr na cama, desenhar-lhe o rosto. Dos dois homens que O traziam, sei pouco, o meu suficiente. Não me arriscaria a descrevê-los sem o risco de a coisa que amei perder o sentido. Por vezes, me rendo à tentação de embaralhar suas fotos e não entendo como o sem-graça se me dava uma existência tão alma. Tudo se parece melhor quando fecho os olhos e deixo por conta da invenção – como inventar começa por eles, posso então agradecer aos dois, mas só. E só o meu invento me retém. De olhos fechados, não preciso fingir o que me existe, o que me é de toque, o que me é de dor. Divirto-me em imaginá-Lo mais uma vez: imaginá-Lo é senti-Lo, e O sinto como se sua mão d’água me caminhasse pelo corpo, se fizesse um frio de barriga, um formigamento nos pés. Esse frio que me passeia, que me sopra toda, que me aperta os olhos, que me estreita o peito, que me atrita a pele e me faz silêncio e me faz instante e então me faz – esse frio é Ele.
E agora que não os tenho, não posso negar o que me sustém, o que me é. Se amor não é o que foi, nem o que fica, amor é o que se inventa. E agora que me amedrontam Ratos e Cobras, cheguei a ter medo de estar sendo castigada por mantê-Lo comigo, dormindo um sono de criança.
Se a natureza me castiga, é porque estive grávida de dois homens. E desde o primeiro mês, Ratos e Cobras, rancor e choro, vieram anunciar que isso não era permitido, ah não, não era. A natureza, desconfio, nos quer sofrimento. É o jogo: quem sofre, procura; faz filhos, netos; estica a vida e dá de comer à coisa chamada evolução. Sei que não há castigos, mas me apavoro. E pavor é pavor, mulheres grávidas não suportam senti-lo.
Descobri cedo que amar assim me deixava sozinha. Desde que o soube, minha casa não me protegia mais, ninho de Ratos e Cobras. De tudo eu sabia: meu filho não era bem quisto no mundo. Era filho do invento, e inventar é com a natureza, e ela jamais poderia entendê-Lo, mesmo que eu O entregasse. Ele foi, e é, um segredo meu. Passeei de uma pessoa a outra para amar uma terceira. A essa, digamos, ambigamia, eu chamo simplesmente amor. E amor é ininteligível mesmo.
Eu sempre soube, de mim pra mim, que seria um menino. O que pensei dEle foi que eu podia me nascer de novo e de novo, e nesse nascer várias vezes, chegar à eternidade. Descobri que isso de ser eterno cabia no sentir a barriga crescendo. Aquilo de viver mês a mês uma vida diferente era, senão a melhor forma de me salvar, pelo menos uma esperança. E a entendi como se meu filho pudesse ser também o homem que amei. Pouco importava que a natureza me enviasse Ratos e Cobras para me mostrar que amor assim estava errado. Que amor assim era proibido, que amor assim não era. Que amor se ama, não se inventa. Regras e cobranças. Mas se a natureza me sabia grávida antes de mim, também ela tinha lá sua culpa. E foram nove meses em que a natureza tentou evitar a si mesma. Dos nove medos, me fiz por dentro outra mulher a cada novo mês.
No primeiro deles, descubro que tanto raio desentoca Rato quanto copo vai parindo Cobra.
No segundo, enquanto Ratos vestem minhas roupas, cantos de sombra têm perfis de Cobras.
No terceiro mês, Cobras e Cobras desejam meu leite; Ratos e Ratos procuram minha toca.
No quarto mês, eu abraço minha barriga; Ratos e Cobras brigam comida.
No quinto, no sexto, no sétimo, se me sustento de marmelos que sonho, Ratos e Cobras barulham meu sono.
No oitavo mês sou tão faceira, que Ratos e Cobras parecem de areia.
No nono mês, estive grávida: meu filho é o vendaval que me limpa e a casa.
Durante o tempo em que o vi crescer, do meu seio aos pés que correm o pátio, mantive o medo. E era porque o medo me havia anunciado tantas coisas, me povoando de bichos e o veneno dos dentes, que cheguei a pensar que Ratos e Cobras quisessem meu filho. E acompanhá-lo crescendo, sem cedê-lo ao engano, me fez mulher de orgulhos. Minha culpa, se houvesse culpa, seria a de ser sincera no que ama. E a sinceridade às vezes faz medos, atrai bichos terríveis.
Mas agora, que o tenho comigo, e o meu menino brinca com bolas e ursos, sou capaz de sorrir, mesmo que eu o veja com Ratos e Cobras. O gato voltou a passear pela casa, e isso me tranqüiliza. Filtro o gato e não enxergo nada além. E é só um gato com sua criança.
E se meu filho não se dá ao medo, ganho a mesma inocência dele, e Ratos e Cobras, perdendo a propriedade, desaparecem. Quando o sol se põe, a única coisa que fica é a escuridão, os seus corantes. Nenhum invento novo. Já posso dizer que marmelos têm gosto de marmelos, e não gosto deles. Apenas me preocupa esse inverno, e os Ratos e Cobras que possam brotar numa época de mundo mais ermo, quando as coisas todas aprendem o assobio.
Ontem, por exemplo, houve raio e chuva, e, expulsos do jardim, deixamos cair um marmelo mordido, Resolvemos, mãe e filho, dormir mais cedo. Tomei banho com meu menino e o esfreguei bem, tirando resquícios do medo que tanto depositei nele. A cobra do ralo há muito não aparece. Já não visto os ratos de névoa. Cozinho pinhões e os fervo tão demoradamente, que a água parece sangue, mas de imediato passo a crer que a água nunca esteve tão limpa. E só por isso percebo que meus olhos tomaram banho, e as coisas ficaram velhas.
Meu filho dorme. Desenho seu rosto com as minhas mãos. Se insistir, posso aceitar, nos traços dos olhos, as sobrancelhas de um, os cílios de outro. Mas isso é garimpar uma lembrança de dois homens que meu menino nunca conheceu. O rosto, se eu realizasse o rosto que amei, seria assim, igual ao do filho que toco. Sei que meu filho é Ele, a única possibilidade de tê-Lo. Fecho os olhos e do meu lado dorme um homem que só em mim existiu. Durmo sem sonhos, mas durmo feliz. Reconheço em meu filho um cheiro que me conforta e me amolece. Até que desperto estrangulada de reviramento e calor. É inverno, e abandono roupas e cobertas. E se quando acordada não vejo um menino, resolvo beber água, porque tenho muita sede. Três copos cada vez que quero um. Já não choro mais e só então entendo por que me vieram os Ratos e as Cobras. Se foi mesmo por isso, chegaram muito cedo, já nos primeiros meses de gravidez. Até que eu faça, muitas cobras deverão botar ovos de muitos ratos.
Ratos e Cobras passaram a ser sombras de ratos e cobras. Multiplicam-se à noite, no meu quarto, no meu sonho. Talvez seja a vingança. Beber água é meu contraveneno, minha santa insônia. De manhã, sufocada de casa, vou ao jardim. Meu filho ainda dorme meu homem. Por uma linha infinita ao alcance dos olhos, a geada da noite parece ter queimado o verde. Mesmo assim encontro, de antigas esperanças que plantei, flores nascendo em pleno inverno. Com uma alegria que me aquece, me descubro um sorriso: são amores-perfeitos. Se essas flores são capazes de enfrentar tanto gelo, considero amor-perfeito a invenção que a natureza jogou fora.