Amendoeiras

Conto de Adriana Lisboa
Adriana Lisboa, autora de “Hanói”
01/10/2005

As amendoeiras amarelavam, em algum lugar. Preparavam segredos na folhagem: segredos de outono. Depositavam toda sua fé na intenção de amarelar. Pensei nas amendoeiras que tinha visto pelo caminho. Moro num lugar em que praticamente tudo o que se sabe do outono é a atitude dessas árvores, e no mais o verão se confirma em junho, com um fervor que às vezes ainda chega à casa dos trinta graus.

O guardador de carros, na praça, era mudo. Mas tinha todo um estoque de veemências na garganta, a acompanhar seus gestos, com os braços, a cabeça, as pernas, o corpo todo, mais veementes ainda. Estacionei o carro à sombra de uma árvore que não era amendoeira e estava inteiramente verde. Ele veio me sinalizar para que estacionasse mais adiante. Apontou muitas vezes para os próprios olhos, e depois indicou o canto de calçada onde queria que eu deixasse o carro. A mensagem: moça, ali guardo seu carro melhor.

Guardar: vigiar para defender. Tomar conta por, zelar. Reter na memória. Ter em si; encerrar, conter. Adiar, procrastinar. Acautelar-se, precaver-se. Deixar de pronunciar, de comunicar; calar, manter (um segredo). Acolher-se em algum lugar; abrigar-se.

Virando as costas ao guardador de carros, vi o meu amigo. Lia um livro enquanto esperava por mim. Fazia seis meses — que esperava por mim? Seis meses, pelo menos, que os segredos das amendoeiras circulavam entre nós dois, revolução das estações. O passado é mesmo um rascunho? É preciso ir completando essa espécie de croqui com a ficção da memória? O futuro, por outro lado, talvez seja nosso auto-retrato naïf. O que for. Ele esperava por mim. Talvez não uma espera de seis meses, que essa é apenas liberdade poética (menos: improbabilidade poética). Digamos: uma factual e comprovável espera de dez ou quinze minutos, à sombra da imensa árvore verde.

Meu amigo lia seu livro e, desde o primeiro dia, vê-lo tem sido, para mim, um susto revestido de veludo. Uma vez, já faz alguns anos, ele grudou em minha lembrança de tal jeito que tive de me meter debaixo do chuveiro, para ver se o esquecia ralo abaixo. Naquele dia, funcionou. Mas os sustos se reiteravam, vinham se reiterando, refrão de cantiga. Não há ralo que comporte tanto. Em seis meses, seis anos. Seis vidas (deixando a sétima, felina, a cargo da improvisação).

Duas horas mais tarde, eu olhava para o meu próprio corpo nu na sem-cerimônia do espelho cravado no teto. Meu amigo adormecia — eu sentia os espasmos musculares do seu corpo. Fechei os olhos também. Sonhei com o teatro de sombras. Silhuetas passavam nas costas de um pano branco. De algum lugar oculto vinha a luz, por trás. Vi a sombra de um enorme pássaro com um penacho na cabeça, e vi a sombra da bailarina favorita do imperador Wu Ti, na China da dinastia Han. Quando acordei, olhei para o lado e tentei reconhecer meu amigo.

Existia? Era o rascunho que eu fazia de um passado por vir? Ele acordou e abriu os olhos. Pude examinar bem lá dentro. Achei coisas que não sabia. Gestos de bailarinas chinesas. O tapete das folhas mortas das amendoeiras, no chão, falsa impressão de clima temperado, falso suspiro europeu. Achei os moleques da praia comendo a polpa da amêndoa. Achei todas as minhas seis vidas, mais a sétima, que acabava de se improvisar.

Mas nesse mesmo instante notei que o meu amigo já não estava ali. Primeiro ele assumiu os contornos de uma silhueta no teatro de sombras. Depois se tornou uma silhueta vazada pela luz e pelos meus pensamentos, uma trama esgarçada, rede e renda. Depois, apenas uma idéia de amendoeiras no início de um outono que não era.

Suas roupas estavam bem ali, do lado. Amarrotadas, lançadas pelo chão. Suas mãos estavam bem ali, em mim, no fantasma vibrante das impressões digitais. Mas quando eu olhava para o lado era apenas o oco do lençol pálido, sem sombras por trás. E quando eu olhava para o teto era apenas o meu corpo refletido, resto de alguma coisa já vertiginosamente longe, correndo como os milésimos dos segundos no cronômetro.

Vertiginoso: que causa vertigem. Que gira com enorme rapidez. Que causa o deslocamento velocíssimo de algo ou que afeta algo com enorme ímpeto. Que ocorre com intensidade e muito depressa. Que causa intensa perturbação, que arrebata.

Onde estava o meu amigo? Para onde teria ido? Dormiria de olhos bem abertos numa das dimensões extras do universo, aquelas minúsculas dimensões que se dobram sobre si mesmas? Tinha acordado para o seu outro sonho, os seus outros sonhos? Tinha feito de mim um passado tão frágil, um toque tão suave do lápis sobre o papel, que eu já inexistia, poucos instantes depois de existir?

Sozinha, com aquela calma extravagante que há no coração de toda vertigem, tomei um banho. O ralo do chuveiro era bem pequeno: impossível escoar alguém por ali. O cheiro do sabonete era ruim. As toalhas eram macias. Voltei à praça onde o homem mudo guardava o meu carro. Não havia amendoeiras ao redor. O guardador me viu chegando. Fez que dizia as coisas que teria dito se as palavras não grudassem na sua garganta. Me chamou lá de longe, com o braço.

Chamar: convidar para junto de si. Dizer o nome de alguém. Atrair a atenção de alguém Impelir, arrastar (embarcação) pela força da corrente. Despertar alguém do sono.

O guardador me mostrou um balde d’água e um esfregão, indicando com isso que tinha lavado o carro, e que por isso o pagamento teria que ser mais substancial. Sempre a meu critério. Mas mais substancial. Não respondi, não peguei a chave nem a carteira na bolsa. Éramos dois pequenos mundos impróprios, eu e ele, o metal reluzindo ao nosso lado, a água ainda viva no balde.

Ele fez um gesto com os olhos e a ponta do queixo. Atrás de você, dizia.

Virando as costas ao guardador de carros, vi o meu amigo. Lia um livro enquanto esperava por mim. Fazia seis meses e algumas horas — que esperava por mim? E os segredos das amendoeiras circulavam entre nós dois, ainda, revolução de uma revolução das estações. O passado: rascunho. Seria preciso ir completando essa espécie de croqui com a ficção da memória. Futuro: um auto-retrato naïf. Emoldurado e pendurado na parede de um museu que ninguém vai visitar.

Ele esperava por mim. Talvez não uma espera de seis meses, que essa é apenas liberdade poética (menos: improbabilidade poética). Digamos: uma factual e comprovável espera de dez ou quinze ou vinte minutos, à sombra da imensa árvore verde.

Esperar: ter esperança em, contar com, confiar em. Não agir, não tomar decisões, não desistir de algo, não ir embora. Aguardar. Contar com a realização de algo. Supor, presumir, conjecturar. Imaginar.

Adriana Lisboa

Nasceu em 1970 no Rio de Janeiro (RJ) e atualmente vive nos Estados Unidos. Entre romances, contos, livros infantis e infanto-juvenis, possui mais de dez títulos publicados. Possui três títulos em poesia: Parte da paisagem (2014), Pequena música (2018 — Menção honrosa no prêmio Casa de las Américas) e Deriva (2019).

Rascunho