Alergia a cloro

Conto de Luís Antônio Giron
Ilustração: Ramon Muniz
01/08/2004

O funcionário Taveira foi tirando o cadáver do congelador, enquanto afirmava que o extinto era meu tio e se chamava Adalberto; ele estava todo embrulhado em papel celofane rosa, com fita vermelha e tudo como um buquê de margaridas: um rosto velho, a boca caída — eu nunca o tinha visto, mas estavam dizendo que era mesmo meu tio, remanescente da Guerra do Paraguai e morto havia três anos. E, com essa neurose de me preocupar com qualquer tolice, já começava a desconfiar de que aquele cadáver não era tio meu coisa nenhuma, tenho mais com que me preocupar. A conta de luz está vencida e não tenho onde cair morto e este traste vai começar a feder debaixo de um viaduto. O funcionário Taveira esboçou uma careta e, voltando-se para o cadáver Adalberto, sorriu e passou a acariciá-lo com a mão esquerda: vê só que pálpebras tão roxas. A autópsia acusou intoxicação com almôndegas enlatadas, num certo festim de casamento em Chipre. Seu crânio tem perfurações de furadeira, com coágulos dançando ao compasso de A Bela Adormecida — e ainda disse que eu deveria providenciar de repente o traslado, o que me trouxe a preocupação de levá-lo ao cemitério, tratar dos funerais, nem tinha dinheiro para isso, nem para a conta de luz e chega dessa bobagem que eu quero ir embora daqui, mas Taveira insistia: o senhor tem de levá-lo; se não o fizer, até os guaranis vão querer o corpo para definir algum ponto obscuro da História do Paraguai, mesmo sabendo que a nossa está claríssima; o senhor sabe como são esses estrangeiros, sempre querendo deturpar a verdadeira verdade de nossa História. E é claro que o senhor não vai querer que o corpo de seu pobre tio seja levado lá para o Paraguai, não é?

Era nesse instante que tiravam o cadáver da geladeira e eu via uma nuvem cheirando a cloro a envolver o celofane e a se aproximar de mim; se eu espirrasse agora, seria em caracteres góticos, já sentia minhas mãos tocando o celofane, e o papel fazia um barulho de fogueira no fundo do quintal de minha avó. E, se eu procurasse minha avó, que tinha contatos com armadores e enterros, teria de me ver logo atrás de um ônibus, gritando tanto que o motorista resolveu parar e eu entrei envergonhado para não fazer vexame em face da platéia, já que o funcionário Taveira havia me dito que geralmente quem espera ônibus não tem paciência para uma prosa à beira de um regato com cisnes negros.

Daí é que pensei no defunto Adalberto sentindo frio no congelador e o ônibus apinhado era morno com todo aquele suor que me embalava de modo a me fazer tropeçar a todo instante até chegar à casa de minha avó, onde a porta era de metal esmaltado e fazia tanto barulho que ela veio sobressaltada atender: o que houve contigo, Castro? Referia-se à nuvem de cloro que pairava sobre minha cabeça; nem respondi, vó: e contei a ela todo o caso que me preocupava tanto, e ela disse só conhecer um Adalberto que mora na frente do cinema e tem uma mulher que sempre compra verduras na esquina. Ela começou a me chamar de irresponsável, tive vontade de me enrolar na manta que ela me estendia. Disse que conhecia um coveiro que ia trabalhar nos tijolos do túmulo durante todos os cento e cinqüenta cruzeiros — porque minha avó sabia das dificuldades por que eu passava e fiquei a pensar por quanto tempo iria trabalhar o tal coveiro com apenas cento e cinqüenta cruzeiros.

A par ou não disso, o coveiro Calógeras já trabalhava nos tijolos duma tumba naquele dia chuvoso. Edificando-se o túmulo e ele cantando Meu Boi Barroso, através da neblina de cloro que me orbitava. Quando chegamos, estava meio curvo diante de uma cova de indigente; cumprimentou minha avó que me apresentou este é meu neto Castro Alves. Ele meneou a cabeça e, com um olhar que me pareceu maligno, me perguntou se eu conhecia a filha dele, Verlaine; o retrato de Verlaine ampliou-se diante da nuvem de cloro de tal maneira que agora eu via seu rosto gordo do tamanho do Colosso de Rodes, arregalada e muda, uma mudez sem precedentes, como se ela nunca tivesse me conhecido: “Verlaine Calógeras (1959-1974) que o disfarce da sua alma se condoa dos malvados deste mundo”. Agora eu via a inscrição do epitáfio como uma legenda por sobre uma tela de cinema que exibia o Colosso de Rodes, e a legenda balançava e sobre a legenda o sorriso de um diretor famoso. Daí me veio o frio horrível da noite em que Verlaine voltava da escola e a lua ofegava como um cão esfaqueado.

Porém minha avó e o coveiro Calógeras me fizeram voltar ao cemitério com um empurrão que me fez tossir e pensar nas preocupações que me assolavam, o cadáver de meu tio presumível e o fato de Verlaine estar voltando da escola naquela noite quando as nuvens cariavam os dentes do esfaqueado. Ela estava com uma saia negra, porque à noite era negra; verde-escura à tardinha em que eu a vi pegar o ônibus para ir ao colégio. Palavra que não tive coragem de segui-la naquele instante, mas à noite as macegas perto da escola compunham um cenário convidativo — e ali me escondi.

“Só vou trabalhar os tijolos do túmulo durante os trezentos e vinte cruzeiros” — tinha Calógeras o monopólio dos túmulos e podia exigir qualquer coisa, minha vó disse “vá lá” e comecei a me preocupar com o preço que o coveiro exigia, pois, quanto mais dinheiro ele ganhasse, menos tempo trabalharia. Depois minha avó disse: sabes o quanto é necessário, Castro, quero prezar pelo enterro digno do teu tio Adalberto que nem conheci, mas devia ser um homem bom, um dia descobriremos o parentesco e vamos passar a levar flores para o túmulo dele, sem o que a opinião pública estranharia nossa indiferença. Tive vontade de jogar tudo para minha avó, minhas preocupações cresciam tanto, e eu via as coisas cada vez mais nubladas, exausto e só queria estar atrás da macega, esperando Verlaine descer o morro iluminado pelas lâmpadas de mercúrio. Tentei relacionar a carcaça Adalberto com Verlaine descendo o morro, e se o cadáver fosse o culpado de tudo, pois adorava comida enlatada, e Verlaine morrera naquela mesma noite, o coveiro ouviu minha resposta: sim, eu a conhecia; ele disse lembrar-se muito bem dos coágulos marrons-escuros que encontrara nos lençóis de Verlaine e da maneira como ela reagiu, papai! comi chocolate, foi isso, juro. Ela começou a chorar, tive de dizer a ela que nada tinha havido, que eu compreendia essas doenças de mulher, ela fungou um pouco, tinha catorze anos e me disse que tinha ouvido o coaxar dos arbustos e teve de agüentar até aí pelas cinco da manhã e finalmente foi olhar de perto, mas não viu nada senão um vulto agachado que lhe disse vem cá, meu benzinho pasteurizado — e começou a chorar e não me falou mais nada.

A partir daí, minha avó me servia café, eu esperava Verlaine atrás da macega e confesso que nunca fiz nada, embora tivesse pensado em. Ou tivesse feito. A verdadeira verdade que me preocupava e que consta dos autos é que ela veio descendo e lhe dei um encontrão acidental porque os arbustos se agitavam e ela se assustou a princípio, depois me olhou bem firme sem saber quem eu era: sou o Castro não me conhece? Ela gritou e saiu correndo, nem fui atrás. Se havia algum arbusto coaxando perto do seu leito não era eu. Assim é que me veio de novo a preocupação de comer broas, tomar café e pensar no envolvimento do corpo Adalberto com Verlaine, mas já de manhã eu me acordava de um sono gigantesco e Verlaine estava morrendo de intoxicação com feijão enlatado, e o dia todo fiquei tão quente dentro do ônibus, esperando que ela voltasse.

Minha avó passou a falar no cansaço, em não levar o extinto Adalberto em carro fúnebre com uma escolta de amigas atrás, erguendo velas para cantar glórias e mais glórias; e que maravilha seria padre Anatoninho em seus sermões belíssimos, caríssimos filhos: este que se foi desta para a outra não possuía pecados. Homem voltado ao lar, ao trabalho e à oração, os filhos que deixa no mundo hão de dizer é pois bem verdade, não temos mais pai. Este fato acabrunha-nos; não poderemos nos resignar com esta cruel separação. Porém por certo ele goza duma felicidade inextinguível, seus macabros sofrimentos estão acabados e do alto lá do céu ele vela por nós, assim por diante, padre Anatoninho sempre foi pródigo em palavras de conforto.

Projetei o sermão para Verlaine que morria sem ter como se defender das acusações. Eu preocupado com as desconfianças do pai dela, ele chegando e minha vó (que preparava um bafo quente na caneca para ionizar a nuvem que se ampliava em volta do meu crânio) disse-lhe que todo devia parecer um enterro indigente, porém digno.

Eu estava quase a ponto de fugir dali, ele me focou um olhar de afronta como se quisesse me fazer trabalhar junto nos tijolos do túmulo durante todos os trezentos e vinte cruzeiros; eu disse que talvez os coágulos dos lençóis de Verlaine fossem os mesmos que dançavam ao som de A Bela Adormecida no finado Adalberto, mas ele não entendeu nada e comecei a me preocupar com meu próprio crânio nimbado de cloro, passando a comentar que Verlaine não era assim tão boa moça como supunham.

O coveiro assentiu, com se dissesse eu sabia; nem notei que ele estava saindo a tratar de uns negócios e minha avó veio trazendo a caneca, o cheiro do bafo não era mais o de cânfora e sim de cloro. Descobri que minha nuvem se adensava e, por questões de foro íntimo, não a avisei da resolução de visitar o túmulo de Verlaine à noite, e pulei pelas cercas até chegar ao necrotério, onde o funcionário Taveira me recepcionou com a alegria, ah, o senhor de novo! É claro que o túmulo de Verlaine não estava ali, mas o cadáver novamente foi retirado da geladeira, Taveira passando os dedos ao redor dos defuntos olhos arregalados, dizendo vê só que pálpebras tão vermelhas. Daí eu quis estar no cemitério ao pé do túmulo de Verlaine e ou mesmo ouvindo minha avó dizer que o coveiro Calógeras iria trabalhar de tudo (ele me pareceu displicente, talvez quisesse ficar só, a remoer sobre os coágulos nos lençóis de Verlaine). Mas minhas preocupações com a carcaça Adalberto subiam e resolvi nomear Taveira meu bastante procurador para fins de cuidados e preocupações com o cadáver, no que ele se recusou alegando várias ocupações com a administração do necrotério. Não o levei em conta e fui saindo em direção ao túmulo de Verlaine, tranqüilo com o fato de Taveira estar se preocupando por mim, porém logo lembrei do restante das preocupações e nomeei um mendigo meu bastante procurador para as questões referentes à nuvem de cloro que assolava o crânio como se este fosse uma granja que sofresse as agruras da peste de gafanhotos do Egito. Mediante remuneração, o mendigo começou a me seguir, dizendo oh! esta nuvem, como me preocupa! Agora eu já estava ajoelhado diante do túmulo de Verlaine, eram duas da madrugada. Olhei para a foto nublada e comecei a pensar no cão esfaqueado esperando comigo, atrás do arbusto, que ela viesse; parecia ouvir uma canção trauteando por baixo de um daqueles túmulos e comecei a me preocupar com o espírito de Verlaine e suas nódoas no lençol; virei-me para o mendigo que continuava oh! esta nuvem, como me ocupa, o que vou fazer com esta nuvem? E perguntei se ele não conhecia uma outra pessoa de confiança — é que eu queria nomear um outro procurador para as questões referentes a Verlaine. Ele disse que conhecia e chamou Manco, vem aqui um pouco, Manco! e Manco apareceu assobiando uma rancheira, era barbudo e vestia preto, eu lhe dei algum dinheiro, virou meu terceiro bastante procurador e, tão logo recebeu minhas instruções, começou a ler porcamente o epitáfio, com uma voz esganiçada: que su-a, é, sua, alma. Se com… do… a dos… mal-va-dos, é, malvados, deste mun-dôooo.

Os dois me seguiram quando deixei o cemitério, ambos sempre repetindo suas respectivas preocupações. Eu estava me tranqüilizando quando não tive certeza de que o funcionário Taveira estivesse agindo de forma adequada, tinha a impressão de que ele não estava se preocupando e apenas cultuava as pálpebras intumescidas do saudoso Adalberto, então resolvi voltar ao necrotério. Lá estava Taveira sentado numa mesa, condecorando algumas enfermeiras. Perguntei o senhor ainda não começou a se preocupar com o cadáver? Ele francamente falou que não havia tempo, mas que uma das enfermeiras condecoradas teria o máximo prazer de me acompanhar, desde que bem remunerada. Aceitei e nomeei a mais piedosa de todas, a que tinha o rosto da Caridade, um dos três anjos do quadro que enfeitava a sala da casa da minha avó. A enfermeira Ambora então virou a minha bastante procuradora para questões atinentes ao finado Adalberto. Ao terminar a solenidade de entrega das condecorações, começou a choramingar oh! Adalberto, oh! Adalberto! Despedi-me com efusão do funcionário Taveira, pois agora não tinha mais preocupações além das desconfianças do coveiro Calógeras.

E lá eu caminhando pelas vielas, pois tinha medo de que alguém desconfiasse de que eu vinha acompanhado por três procuradores que falavam ao mesmo tempo, cada qual se preocupando ao máximo; ai, se alguém desconfiasse, eu teria de nomear mais um procurador para se preocupar com as desconfianças…

Chegávamos à casa de minha avó porque eu queria tomar café, mas ela não veio atender. Então comecei a me preocupar com ela e tive de nomear o guarda noturno da quadra o meu bastante procurador em questões referentes a minha avó, e ele passou a murmurar minha pobre avozinha, coitadinha, que não canso de lembrar. E, seguido pelos quatro procuradores, comecei a me aproximar da casa do coveiro, pois eu ainda estava preocupado com as suspeitas dele. Ali se via a luz acesa bem como a silhueta dos arbustos a coaxar no jardim. Ia bater, mas comecei a me irritar com os vagidos dos meus representantes e apareceu providencialmente padre Anatoninho, que voltava de uma extrema-unção na casa ao lado; eu sabia que ele iria perguntar o que houve, meu filho?, mas não lhe dei tempo: pus-lhe uma moeda na mão e o nomeei meu bastante procurador para questões atinentes aos vagidos dos outros quatro procuradores. Alma boníssima a de padre Anatoninho: dirigiu-me um olhar pio e passou a abençoar os quatro, a murmurar: Que Deus vos limpe, mas calem-se, por favor! — e bati à porta, já que as palavras do sacerdote souberam imprimir à noite apenas o coaxar nos arbustos. Ao abrir a porta, o coveiro Calógeras nada disse, ficou ali me olhando desconfiado até que vieram à porta uns três sujeitos vestidos com capas de gabardine, muito mal-encarados. Calógeras cochichou algo com eles que não entendi, depois se voltou para mim esses são meus amigos paraguaios — e nos fez entrar. Homem de premonições dantescas, padre Anatoninho vislumbrou uma balbúrdia por parte dos outros quatro procuradores e autoritariamente levou a mão aos lábios e pediu silêncio com um pss! o que fez com que os quatro se entreolhassem extasiados. Sentamo-nos e os paraguaios fizeram uma saudação ensaiada que lembrava as baladas românticas coreografadas de um musical sobre quatrocentos soldados feridos durante a Segunda Guerra. Claro, todos aplaudimos, mas o mais entusiasmado era o padre que volvia aos céus os olhos, dizendo Senhor, estas canções são o Éden! Os paraguaios, já sentados, conduziram conversa para minha nuvem de cloro, mas eu disse que era função do mendigo dar declarações a respeito do assunto; ele apenas assegurou que estava muito preocupado com a nuvem, mas um dia não haveria mais motivos para se acabrunhar: iria se acostumar, por certo. E, inesperadamente, o guarda noturno passou a dizer quero saber como está a avozinha, coitadinha, ela não está em casa, estou tão preocupado! O coveiro Calógeras respondeu-lhe brusco: está doente e resolveu fugir de casa para morrer num canto qualquer do universo, como as cadelas.

Calógeras falou dos paraguaios, eles estão aqui para levar o cadáver do seu tio para Assunção, a fim de descobrirem mais detalhes sobre a verdadeira verdade da Retirada da Laguna ou coisa parecida. Eu disse não ter nada a ver com isso e que a encarregada era a enfermeira Ambora, que passou a se recusar terminantemente a entregar o cadáver Adalberto àqueles homens mal-encarados apesar de talentosos investigadores, o que fez com que aflorasse uma intensa discussão que não me dizia respeito. Eu só queria parar de me preocupar com as suspeitas de Calógeras e, antes de sair, nomeei secretamente os três paraguaios meus bastantes procuradores questão.

Lá fora nada mais me preocupava, ainda podia ouvir os paraguaios a discutir com Ambora, mas não me importava, tranqüilo, sentindo na medula o vulto do padre Anatoninho numa bênção a mim. Não começou a chover e a rua estava iluminada como um circo. Só me restava agora ir de encontro ao destino e correr contra um ônibus a toda velocidade que vinha em minha direção, não sem antes deixar de nomear um procurador para os trâmites da autópsia, pois sempre tive horror de ser trucidado.

Ilustração: Ramon Muniz
Luís Antônio Giron

Autor de Ensaio de ponto, Mario Reis, o fino do samba e Minoridade crítica. O conto aqui apresentado integra o volume Até nunca mais por enquanto, a ser publicado pela Record.

Rascunho