Tática
Era imperceptível. Estendia cada aperto de mão por um segundo a mais; cada abraço, por dois. Bem contabilizados, subtraía os excessos ao relógio da solidão.
Sísifo I
Manhã. Miram-lhe os sapatos pretos de amarrar. Breve, devorarão seus pés e, sobre eles, seu corpo inteiro. Não precisam de pegadas ou roteiros. Já sabem para onde o levam — com esse peso invisível, maior do que pedras; peso que dispensa subir ou descer montanhas.
Sísifo II
Os sapatos cansados, solas já amaciadas pelo tempo. Sem perceber, pisou na tampinha de cerveja, que aderiu a um dos pés. Depois, no outro, uma tacha. À sua revelia, os passos faziam percussão. O ritmo crescente, presto, convencendo. Lembrou-se: Fred Astaire, Carlinhos de Jesus… Derrubou batente, janela. Abriu larga porta e o sol acendeu toda a casa.
A indústria da sorte
Percebeu que não poderia mudar a vida. Seria doloroso; o tempo não o favorecia. A borra do café — como a leitoras místicas — revelava que deuses não reconhecem destinos, nem as tatuagens que sabia trazer nos rins. Sua história escrita em textos de alheia autoria. Eram falsos os prêmios e os adornos. Pensou em peregrinar a qualquer monte sagrado. Olhou o relógio. Já eram quase seis. Logo, o trânsito seria impossível.
Fábula
No zoológico. Não exatamente uma escolha sua; o filho de cinco anos pela mão. Deteve-se diante do lobo europeu. Por um segundo, através das grades reforçadas, os olhos do animal falaram aos seus. Docemente. Homem, fera? O estremecimento que atravessou a medula registrava o fenômeno em corpo. Uma espécie de plenitude. O pombo, descendo à procura de pipocas perdidas, trouxe a realidade. Qual?
Variações
“Como vai? Tudo bem?”. Pela milionésima vez, cumprimentou um outro alguém que jamais conheceria. “Como vai? Tudo bem?”, cumprimentou ainda. Desta vez, os sinos da catedral.
Escarlate
A cada recusa, nele enlouquecia o desejo. A violência da paixão arrancou o brinco e rasgou a blusa — enquanto a bala atravessava o próprio crânio e o cobria de vermelho-paixão.