A volta da polêmica

Conto de Marcella Lopes Guimarães
01/04/2001

O retorno de algumas discussões é vital para a saúde literária. E é na reedição da antologia Contos Populares do Brasil (Landy, 2000) — organizada pelo eterno polêmico Sílvio Romero (1851–1914) — que nos deparamos com qüiproquós, se não imprescindíveis, pelo menos marcantes e saborosos. Desde a sua primeira aparição, a obra rendeu ao seu organizador um incremento considerável de polêmica que acabou por marcar também toda a vida do crítico brasileiro. A simples menção ao volume exige a recuperação, mesmo que rápida, da história que cercou a primeira edição portuguesa da obra. Tanto  os Cantos Populares do Brasil (1883) quanto os Contos Populares do Brasil (1885) tiveram introduções e notas escritas pelo português Teófilo Braga, rival de Sílvio, mas seu correspondente quase “siamês” nas letras portuguesas, e foram tão adulteradas por ele que a autoria de certos encaminhamentos expostos nas obras foi colocada em risco. O certo é que Sílvio fez questão de esgotar a questão que se arrastou por quase vinte anos, com cores sempre novas, mas nunca sem perder o mau humor.

Segundo o editor Antonio Daniel Abreu, a Landy — que vem resgatando contos populares de vários países — serviu-se da edição da Universidade de São Paulo, tornada matriz para a que vem a público neste momento. Assim, nesta podemos ler a introdução de Sílvio Romero e uma “Nota Indispensável” em que o polemista retoma o problema com Teófilo Braga fazendo um balanço das transgressões feitas na obra e ao modo como ele tratou de resolvê-las na segunda edição carioca. Aliás, nesta mesma nota, e somente nela, o crítico destaca a abordagem metodológica que cercou a recolha das composições — “Todos os contos que se encontram neste livro, (…), foram por nós diretamente recolhidos da tradição oral. Não incluímos neles nenhum artifício; nenhuma ornamentação, nenhuma palavra há aí que não fosse fielmente apanhada dos lábios do povo” (pág. 363). Não se encontra na introdução nenhum outro esclarecimento do modo como os contos foram colhidos “dos lábios do povo”, somente a afirmação auto-elogiosa, também bastante recorrente em sua obra, do caráter imparcial do seu trabalho científico. Aliás, teria sido muito interessante que cada volume da série que a Landy está trazendo para o público tivesse contado com um ensaio introdutório; no caso da obra de Sílvio Romero, este ensaio poderia propor uma rápida revisão crítica do projeto do pensador brasileiro para o leitor de hoje.

Se na introdução não somos mais esclarecidos a respeito de como se formou objetivamente a antologia, Sílvio Romero não se nega a expor o seu conhecido método de abordagem da literatura, aliás o seu método para abordar toda a sociedade brasileira, da qual a literatura era um produto histórico, social e evolutivo que a revelava nas suas mais diferentes manifestações. Contra aquilo que tantas vezes chamou de “amaneiramentos críticos”, Sílvio propunha o critério etnográfico para o estudo da literatura e do país. No texto de abertura dos Contos populares do Brasil, as marcas desse critério e do seu modo judicativo de pensar estão na elevação da importância do mestiço como agente transformador das tradições culturais, ao lado da teoria da desigualdade das raças e de suas contribuições para a formação da literatura brasileira. Para Sílvio, a sociedade brasileira era o grande produto de uma mestiçagem ampla, na qual entraram em jogo a fusão racial e a assimilação da cultura. Se o pesquisador foi um dos primeiros a destacar a importância do elemento africano para a nossa cultura, em detrimento das contribuições do indianismo romântico, e a chamar atenção para o fato de os povos se modificarem e se influenciarem no contato com outros povos, não se pode perder de vista irritantes argumentos aos nossos olhos, como as relações entre “raças superiores e inferiores” (pág.14); a origem dos contos portugueses “que se prendem ao vasto ciclo de mitos arianos, os mais belos da Humanidade” (pág.17); os contos africanos que “têm uma certa ingenuidade digna de ser apreciada” (pág.17); que “o índio foi um ente que se viu desequilibrado e feneceu; [enquanto] o negro um aliado do branco que prosperou” (pág.28) Que não se pense que essas pérolas recolhidas aqui tenham um desmentido no contexto da qual foram recolhidas, na verdade elas ilustram o posicionamento crítico de um autor para quem a desigualdade entre as raças era uma verdade científica.

Na introdução da obra Sílvio Romero: Teoria, Crítica e História Literária (Editora da Universidade de São Paulo, 1978), o mestre Antônio Cândido relativiza o nosso julgamento ao observar que a obra de Sílvio Romero “é uma imagem nervosa do país”, “de uma sociedade marcada por certas desarmonias e discordâncias” e ainda interessa porque o autor “procurou desfazer a cortina de fumaça retórica e ideológica reinante para mostrar o país mais de perto”. Na verdade, se Antônio Cândido exige de nós um olhar contextualizado, mas que tantas vezes também acaba por explicar o homem pelas idéias do seu tempo, não se nega a apontar outros nomes do mesmo cenário crítico de Sílvio que não partilhavam do determinismo social que marcou a abordagem do pensador brasileiro em exame. Esta ressalva é fundamental sobretudo quando encaramos as diversas formas que a Humanidade encontrou/encontra/encontrará para reagir a determinadas linguagens a que tem acesso. Antônio Cândido não esconde as incoerências, mas opta por convocar Sílvio Romero para refutar as contradições. Na obra Passe Recibo (Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1904), Sílvio observa que uma contradição implica no choque de dois pensamentos contraditórios ao mesmo tempo e que a sua obra deve ser lida na sua ordem cronológica para que seus leitores possam entender a evolução natural do seu pensamento.

Essa evolução pela qual Sílvio Romero entendia o seu modo de pensar, marcou uma diferença na forma de abordar as criações populares, por exemplo. Ele passou por uma fase de desprezo por essas composições até entendê-las como fontes básicas da literatura nacional e, em ampla escala, do espírito da nação como um todo. Na verdade, a coleção do folclore, para Sílvio, implicava na tomada de consciência da contribuição etnológica anônima para a cultura brasileira. Assim, apesar de reconhecer que a questão das origens dos contos populares é uma das mais difíceis de decidir, a sua antologia assinala o predomínio dos  contos de origem portuguesa, a quem Sílvio reconhecia que “devemos as dádivas principais de nossa civilização”; são 51 contos de origem européia ao lado de 21 de origem indígena e de 16 de origem africana ou mestiça.

Uma das marcas da abordagem crítica ocidental tem sido a procura de relações que possam normalizar/normatizar a diversidade, tornada legível sob o signo das semelhanças. Os críticos têm procurado apontar também a paixão do próprio Sílvio Romero pelas idéias gerais, em detrimento da “história do documento isolado”, como assinala Alfredo Bosi, em História Concisa da Literatura Brasileira (Cultrix, 1980). Assim poderíamos apontar nos contos uma rede de relações a começar pelos de origem européia: a recorrência do número 3 e do número 7; os pais têm três filhas ou três filhos que pedem bênçãos/pouco dinheiro ou maldição/muito dinheiro conforme a ocasião; filhos caçulas optam pelas primeiras e conseguem salvar a honra familiar; príncipes, princesas astutas, reis e rainhas se agitam em tramas marcadas pela conclusão feliz, coroada pelo casamento; negros, mouros e outros diferentes representam o mal; a morte cruel é o castigo para os inimigos, que são amarrados em animais e despedaçados pela velocidade da sua corrida; as diferentes versões de uma mesma trama proferidas em locais também diversos; as aparições milagrosas de Nossa Senhora ou de Nosso Senhor; reinterpretações de contos de fadas famosos, como A Gata Borralheira ou Branca de Neve; dizeres que se sucedem aumentando sempre um ponto até a formação de longas meadas; decifração de enigmas; encantamentos que se fazem e se desfazem e até enterrados vivos que se salvam por milagre de Deus. Já nos contos de origem indígena, predominam as tramas protagonizadas por animais, o cágado é sempre inteligente, a onça é falsa e o macaco é esperto, a presença do homem é eventual; há também repetições e variações do mesmo tema; podemos destacar ainda a luta pela sobrevivência, pela comida, pela bebida ou pelo abrigo, a disputa entre os animais e a recorrência do disfarce. Os contos de origem africana ou mestiça constituem-se de narrativas bastante curtas e há alternância entre tramas protagonizadas por animais e outras protagonizadas por humanos; é interessante observar ainda nesse último conjunto que forma a antologia a ampliação do universo feminino agora também representado por mulheres casadas que ora se apaixonam por outros homens e são castigadas, ora despertam paixões e castigam e ora resolvem seus problemas graças a planos bem pensados. No cômputo geral da antologia, é preciso mencionar a declaração do local do qual os contos foram colhidos, com predominância óbvia de Sergipe; as quadrinhas que arrematam ou entremeiam as narrativas e o respeito ao vocabulário da região, aliás nos casos em que o organizador prevê problemas para o entendimento de certas palavras há uma nota colocada ao final do conto que presta os esclarecimentos necessários.

O conto de abertura da seção de origem européia, O Bicho Manjaléu, é uma maravilhosa síntese do que se pode encontrar na primeira parte da obra bem como das características apontadas acima. Aqui, um senhor tem três filhas muito belas, aliás as moças também sempre são muito belas, e vê as três se lhe escaparem graças às ameaças de príncipes apaixonados. Depois de anos, nascido um filho do mesmo senhor, o rapaz se sente na obrigação de conhecer a sorte das irmãs e parte. Em seu caminho, consegue importantes objetos mágicos para a sua jornada: uma bota capaz de transportá-lo a qualquer parte, uma carapuça que o tornava invisível e uma chave com a qual o rapaz poderia abrir qualquer porta. Assim, ele parte novamente e, ao chegar a cada reino diferente, descobre que suas irmãs se casaram com reis, a primeira com o rei dos peixes, a segunda com o rei dos carneiros e a última com o rei dos pombos. Esses reis não se negam a receber o cunhado muito bem e lhe conferem garantias em caso de perigos futuros; mas, em cada despedida, os três, cada qual em seu reino, proferem o mesmo arremate, se tivessem objetos mágicos como aqueles que possuía o cunhado, iam imediatamente ver a rainha de Castela. A referência ao reino castelhano é um forte signo português medievalizante já que na Baixa Idade Média a vida pública portuguesa não poderia ser explicada sem a repetida referência ao reino vizinho. Portanto, esta referência e outras de mesma natureza, como a da moura torta, têm a sua longa duração provada no conto popular recolhido por Sílvio.

No segundo grupo de contos, a narrativa O Cágado e a Fonte se destaca por apresentar os temas da disputa e do casamento entre espécies diferentes, já que o protagonista que intitula o texto quer se casar com a filha da onça. Aqui, o cágado também se caracteriza pela vivacidade, graças a um estratagema, consegue suplantar vários animais mais fortes que ele, inclusive o homem, que, como os outros, foge amedrontado ante uma ameaça pouco consistente. É importante dizer que, além do casamento com a pequena onça, o que estava em jogo era conseguir recolher água em uma fonte, ou seja, assim como em outros contos da mesma origem, a busca dos meios para garantir a sobrevivência perpassa os conflitos.

Nos contos de origem africana e mestiça, O Negro pachola tem um lugar especial, pois é ambientado em um engenho. Com a doença do senhor, o negro Pai José “ouviu dizer que ia governar o engenho [e] ficou muito orgulhoso” (pág.359). Tornado Sinhô Moço Cazuza, título que combinava mais com o seu novo papel social, Pai José  passou a fazer questão das vantagens de ser um sinhô: bênção, banho especialmente preparado pela sinhá, mulatinha para esfregar as costas, camisa engomada e ter os piolhos catados também pela sinhá.

Se a leitura dos contos que formam a antologia de Sílvio Romero pode ser feita sob a luz da analogia, que muito corresponde a uma estratégia crítica comprometida com a legibilidade e até com o registro do próprio Sílvio, há um outro caminho menos confortante que passa pela exposição das diferenças, das discordâncias e daquilo que dificilmente pode ser incluído em regra ampla. Quando lemos a obra Contos Populares do Brasil, vem à tona uma primeira dificuldade, a concepção que ordena a recolha. Ao reconhecer que o “português é o agente mais robusto de nossa vida espiritual” e é superior às outras três raças que compõem o povo brasileiro, Sílvio Romero faz muito mais a recolha dos contos desta tradição pontuando apenas com as outras duas. Os problemas metodológicos a partir daí são inegáveis: como se deu a recolha, como se fez o reconhecimento da origem das narrativas, quais as provas que afiançam a decisão tomada na obra de circunscrever um texto a um grupo ou a outro; a distribuição matemática dos contos, feita de maneira nada equânime, corresponde ou não à idéia da desigualdade de raças unicamente dentre outros entraves. Na verdade, a introdução da obra eleva o papel do mestiço na transformação das tradições culturais, mas o processo implícito de recriação não é favorecido por Sílvio já que ele desprestigia matematicamente o terceiro grupo de contos da antologia. A obra poderia ter ganho imensamente se o seu organizador tivesse tornado a sua recolha a expressão criativa daquilo que tantas vezes propalou: a nossa condição de mestiços.

Mais de um século depois da primeira edição da obra Contos Populares do Brasil, esta é uma ótima oportunidade para colocar em movimento tanto o texto da tradição quanto as preocupações de Sílvio Romero. Para Alfredo Bosi, “temos armas para reler criticamente os escritos do mestre sergipano e deles extrair o muito que ainda podem oferecer em documentação (…), é a partir de Sílvio que se deve datar a paixão inteligente pelo homem brasileiro”. Nessas “armas” a que Bosi se refere podemos incluir a bagagem crítica diferenciada a que temos acesso hoje e todo o mundo que a era da informação abre aos nossos olhos, ao mesmo tempo em que encobre pela profusão as particularidades. Podemos redescobrir o pensamento e as obras de Sílvio no momento em que o projeto político vigente no nosso país perpetua as desigualdades sociais; uma ressalva interessante no pensamento do crítico brasileiro é a de que ele jamais defendeu o racismo político (raças superiores no governo das inferiores).

O português Alexandre Herculano investiu na recuperação do passado do seu país por acreditar que a revisão da historiografia portuguesa fosse fundamental para a consciência da realidade nacional; Sílvio Romero pretendeu analisar o país, contribuir para uma reforma cultural, afastar o desconhecimento do Brasil e atentar para as diferenças internas. Em um dos seus momentos privilegiados ele nos inspira a colocar em ação o seu pensamento (como recupera Antônio Cândido), pois “as construções políticas que não são organizadas pelo trabalho popular, que não representam a frutificação de que os ideais da nação são a flor, não têm, não podem ter estabilidade”.

Marcella Lopes Guimarães

Professora Associada II de História Medieval na UFPR, membro permanente do PPGHIS/UFPR, Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 do CNPq. Escritora e criadora do blog Literistorias.

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