Cada vez que penso em Adawood, o repulsivo criador de insetos que vivia no Juvevê, uma imagem diferente se forma diante de mim. Sei que sou dado a mudanças bruscas de temperamento, que afetam minha maneira de ver o mundo, complicam minhas amizades e se convertem em enxaquecas crônicas, então o problema deve estar em mim, e não nele. Mas não é comum encontrar um sujeito como Adawood, não só pela atividade extraordinária (e asquerosa) a que se dedicava, mas também pelas suspeitas que, ainda hoje, cercam seu nome.
Ninguém pode negar que era um homem muito culto e também muito minucioso. Entre os gregos, ele afirmava, a mosca era um inseto sagrado. Sobrevoando, zoando, picando, ela evocava os primeiros ideais da vida olímpica. Simbolizava ainda, acreditavam os gregos antigos, a onipresença dos deuses que, alados ou não, mas sempre içados a mundos superiores, sobrevoam nossas vidas de mortais. Mais tarde, os teólogos da Igreja, nunca cansados de inventar novos mecanismos de intimidação, promoveram as moscas a representantes terrenos do demônio. Elas se tornaram, em conseqüência, mais malvadas e menos interessantes.
Aprendi tudo isso com Adawood, que sempre teve paciência para ensinar e elegância para não intimidar, embora nunca tenha trabalhado como professor. Quanto às formigas, no Marrocos os doentes atacados de letargia e de fraqueza crônicas são obrigados pelos feiticeiros a engoli-las vivas. E entre os bambara, do Mali, as mulheres estéreis eram levadas a sentar-se sobre um formigueiro, único procedimento, ainda que doloroso, capaz de lhes trazer de volta a fertilidade, Adawood também me disse.
Ivan Adawood Pereira era sócio de uma antiga pizzaria no Champagnat. Passava o dia sentado diante do caixa, assinando faturas, anotando despesas, vigiando as garçonetes e os carregadores. Ninguém diria que fosse um filósofo e, na verdade, ainda não estou convencido de que tenha sido. Ainda assim, e não só em seu caso, a fama sempre se sobrepôs à verdade. Em uma de suas visitas ao Brasil, o escritor francês Jean-Paul Sartre, ele sim um grande filósofo, fez questão de vir a Curitiba, secretamente, só para entrevistar-se com Adawood. Esperou horas a fio no bar da pizzaria, tomando uísque e beliscando umas rodelas de queijo de cabra imersas numa mistura de azeite e rum, uma das especialidades secretas da casa.
Depois de duas ou três horas, irado e fedendo a parmesão, Sartre invadiu a cozinha. “Quem esse sujeito pensa que eu sou? Afinal, onde ele está?”, gritava. O chefe de cozinha, um baiano de Ilhéus que por motivos místicos só cozinhava de óculos escuros, se viu obrigado a contê-lo pelo pescoço, ou Sartre começaria a derrubar panelas e espancar empregados. Deram-lhe um copo de água com açúcar, uma dose redobrada de Pernot e depois o acomodaram em uma espreguiçadeira de vime que havia encostada ao último fogão. Dizem que Sartre chegou a cochilar.
Só algum tempo depois Adawood apareceu. “Por que esse escarcéu? Quem é esse doido que gritava?”, ele perguntou, num francês impecável. “Ora, eu venho de Paris para conhecê-lo e você se esconde? Quem pensa que eu sou”, Sartre reagiu. Mas Adawood não lhe deu a menor importância. Como se não tivesse ouvido, foi até uma panela, pegou uma colher e começou a mexer lentamente; um vapor negro, e repelente, invadiu toda a cozinha. Irado, Sartre já se preparava para ir embora, quando Adawood gritou: “E não me venha chamar de filósofo! Isso é para vocês, franceses, que acreditam em papai Noel”. Suas palavras estremeceram o ambiente, mas Sartre, que já tinha desistido mesmo dele e de sua fama de pensador notável, ergueu o queixo, apertou os olhos e se foi.
Todos chamavam Adawood de filósofo, embora ele jamais tenha escrito um livro, um único que fosse. Ele sempre preferiu ser chamado de comendador, embora sua única comenda fosse um título de Cozinheiro do Ano, que recebeu do Anuário da Sociedade Feminina. Uma negação tão enfática de sua genialidade, interpretavam seus discípulos, só podia ser uma afirmação filosófica. Talvez por isso Adawood seja conhecido, ainda hoje, como o “filósofo da negação”, ou “filósofo do nada”; daí, provavelmente, alguma confusão que Sartre, o mestre dos existencialistas, possa ter feito a seu respeito, erro que, naquele encontro, certamente se dissipou.
À noite, já na cama, o filósofo francês foi avisado de chegara à recepção uma encomenda em seu nome. Pediu que a entregassem em seu quarto. Era uma caixa de papelão, dessas que se usam para embalar sapatos, e na tampa se podia ler: “Ao Dr. João Paulo Sartre, filósofo italiano”. Sartre não deu importância à confusão que, provavelmente, o alçava a algum posto no Vaticano e abriu a caixa. Dentro encontrou uma pequena aquarela, que, em cores muito pálidas, representava um repugnante buquê de moscas. Dizem que, em um acesso de fúria, o filósofo francês simplesmente devorou a aquarela, a dentadas famélicas, cuspindo as sobras sobre o carpete do quarto. Mas isso parece improvável, já que Sartre era um homem de estômago delicado e, mesmo quando estava sozinho, de modos imperais. De qualquer maneira, a pintura nunca mais foi vista, o que reforça a versão de que ele, de fato, a comeu. Ou, o que me parece mais razoável, que ela nunca existiu — mas isso estragaria toda a história que me ponho aqui a relatar.
Não havia romantismo algum na relação de Adawood com os insetos. Aquela aquarela, por certo, era só a obra de algum admirador do filósofo francês, disposto a homenagear, e perpetuar, sua passagem por Curitiba. Adawood criava moscas só para vender suas antenas a um laboratório farmacêutico de Tegucigalpa que, a partir delas, fabricava um medicamento de combate à impotência sexual masculina. Diz-se, entre outras tolices, que essas pílulas chegaram curar um eminente presidente latino-americano.
Adawood criava formigas também por motivos empresariais. A partir delas, produzia um biscoito marrom, de gosto picante, muito apreciado como aperitivo em países como a Somália e a Indochina. “Penso como o homem de negócios que sou”, ele me disse, na única vez em que o entrevistei. “O Brasil precisa exportar e eu sou um nacionalista”. Depois que meu artigo foi publicado na Folha do Cotolengo, chegaram a propor que Adawood se candidatasse a deputado, mas ele achou a idéia ridícula, o que era mesmo.
Anos depois, Sartre voltou ao Brasil, para um seminário de metafísica, e aproveitou para vir, por uns dias, a Curitiba. Adawood, a essa altura, não tinha mais sua pizzaria, que se transformara numa igreja evangélica. Passava os dias, agora, em seu Laboratório das Moscas, instalado no fundo do bar A Caravela, no Juvevê, que pertencia a parentes distantes. O laboratório ficava logo depois da cozinha, num corredor fétido que conduzia aos sanitários. Antes de entrar e para tomar um pouco de coragem, Sartre, bebeu duas ou três cervejas no balcão.
A imagem que o esperava não era, de fato, animadora. Encontrou Adawood acomodado em uma poltrona, com os braços cobertos de moscas amestradas, formando uma espécie nojenta de luva. Luvas inquietas, que latejavam sobre seus braços, milhares de insetos a se mover sem sair do lugar. O filósofo francês não suportou o choque e desviou os olhos. O encontro não demorou, Sartre não conseguiu dizer mais que duas ou três palavras, pois foi tomado pela náusea. Diz-se que, ali, naquele bar do Juvevê, lhe veio a idéia de seu grande livro. Se isso é verdade, devemos considerar a filosofia, a partir de agora, uma espécie nobre de somatização.
Mas o fato é que, depois, Sartre contou aos dois filósofos curitibanos que o acompanhavam que, ao ver Adawood com suas mãos cobertas de moscas, veio a entender, enfim, o que é a filosofia. Que a filosofia é, de fato, um susto, ou nada será. Que a filosofia é aquilo que não se espera que ela seja, ou não será filosofia. Com suas luvas vivas, Adawood lhe ofereceu a experiência inigualável do sobressalto. O espanto foi maior que o nojo e, por isso, Sartre passou, desde então, a considerar que Adawood era mesmo um filósofo.
Um crítico literário paulista me contou, mais tarde, que, de volta a Paris, e antes de escrever A náusea, Jean-Paul Sartre chegou a rascunhar um pequeno ensaio sobre Adawood, uma espécie de biografia espiritual, que se chamaria Filosofia de um pobre-diabo, e que jamais foi concluída. Depois de sua morte, Simone de Beauvoir teria encontrado os manuscritos em uma gaveta. Leu-os e, antes de queimá-los, pois lhe pareceram degradantes, comentou com uma amiga: “Os homens, mesmo os filósofos, são muito impressionáveis”.