A vida e as opiniões de quem já viu a morte de perto

Não sei por quê, reuniões sociais me lembram morte
01/11/2000

Não sei por quê, reuniões sociais me lembram morte. A fim de ilustrar minhas concepções sobre o tema, durante um coquetel relatei, como tendo acontecido comigo, a história de um assalto lida em algum lugar, provavelmente num romance. Nessa história, o protagonista — eu — recebe um tiro um pouco abaixo da axila direita e cai deitado num gramado espesso e verdejante, tendo diante dos olhos tão-só o céu azul. Enquanto não chega o socorro, tudo sobre o que ele — eu — consegue pensar é a respeito do céu que ocupa todo o seu campo visual. Não pensa sobre a dor do ferimento, nem sobre a mulher e os filhos, nem sobre a iminência da morte. Apenas sobre o céu, tornado, devido a tudo isso — ferimento, família e morte —, incrivelmente mais belo do que um dia fora.

Essa imagem era-me importante — muito mais do que o assalto — para que eu pudesse continuar dissertando sobre a cor homogênea da morte: o azul. Cor esta infinitamente mais poética do que o tradicional negro. Mas as duas universitárias que eu queria impressionar (reuniões sociais também me lembram sexo, às vezes) com minha sensibilidade e desapego à vida, ficaram mais impressionadas com a história do assalto em si do que com minhas concepções sobre a fragilidade da existência. Por isso, não tive coragem de dizer-lhes que nada disso tinha acontecido comigo, que a história não passava de mero recurso retórico com o intuito de deixar mais vivo o discurso, mais próximos nossos corpos. Meu raciocínio degringolou, a conversa tomou novos rumos e, sem que eu me desse conta, de repente já estávamos falando sobre o último Almodóvar, cujo conteúdo abstrato parecia ser, para as beldades ao meu redor, mais concreto em termos copulativos do que minha inefável presença física.

Nessa hora eu não tive como saber que, meses mais tarde, outra experiência literária — duas páginas negras insertas pouco depois do princípio de uma narrativa — me faria reconsiderar tudo o que até aqui ficou dito a respeito do azul. De fato, a leitura de um famoso romance oitocentista inglês iria fazer com que o preto, e só ele, voltasse a ser considerado, por mim, a mais transcendente das cores, a verdadeira cor da morte. Às favas, as universitárias afeitas ao cinema espanhol!

A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy , de Sterne, é provavelmente o romance mais vivo do século XVIII. Nossos escritores de vanguarda vêem, nele, o prenúncio de uma nova e gloriosa era. Certamente graças ao uso quase ininterrupto de recursos metalingüísticos. Os humoristas, por outro lado, reconhecem nos nove livros que compõem o romance o espelho incorruptível em que melhor se reflete a corrupção do ser humano. A par das experiências formais, as passagens em que o comportamento da aristocracia inglesa da época é satirizado são o melhor momento da obra.

Do Tristram, nunca consegui passar da página setenta. Logo no primeiro dos nove livros (para ser mais preciso, no capítulo 12) uma das personagens secundárias, o pároco Yorick, vem a falecer. Imediatamente após o pároco fechar pela última vez os olhos, duas páginas negras, justamente as de número 69 e 70, surgem diante de nós, repetindo o derradeiro gesto de Yorick. Mera ênfase estilística? Pior: é como se de súbito também o leitor, movido por uma força irresistível, se visse obrigado a fechar os olhos.

A sensação, a princípio, é aterrorizante. Depois, deixa de nos amedrontar para iluminar-se a si mesma.  Não conseguimos desgrudar os olhos das páginas negras. Não conseguimos deixar de nos sentir vazios, melancólicos. Se dá conosco exatamente o que se deu com o homem baleado — eu? —, a saborear o céu. Não conseguimos sequer lucubrar a respeito das próprias páginas, pois estamos anestesiados, contemplando a morte, e fascinados com sua aproximação. Nesse instante, talvez por considerar a leitura árida demais, talvez devido à certeza de que nenhuma outra experiência poderá fazer frente à das páginas negras, desisto de continuar lendo. Mais adiante sei que me depararia com páginas em branco — há realmente dois capítulos inteiros constituídos apenas delas. Todavia, permaneço irredutível, pois a certeza que me consome é a de que, além de outros feitos, Sterne foi o grande inventor da página negra para os séculos vindouros.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho