A última vivandeira

Conto inédito de Ronaldo Monte
Ilustração: Theo Szczepanski
01/12/2014

São muitas as vivandeiras antes de mim. São muitas as que se alimentam dos frutos da guerra, que se entregam ao cuidado dos homens que sabem que vão morrer. É preciso que todas façam seu trabalho, até que chegue minha vez. Tenho que esperar que todas elas abandonem o campo de batalha para poder enfim exercer o meu ofício. Eu sou a última.

Primeiro vêm aquelas aceitas pelos comandantes, que acompanham por dentro os batalhões em guerra. Poucas são enfermeiras, algumas cozinheiras, todas amasiadas com as altas patentes. Jovens e bonitas todas elas, às vezes vestem farda, se engalanam. Raramente são vistas de noite fora de suas tendas. Confortam seus homens, mitigando as saudades de casa. À luz do dia, mandam de acordo com o poder daqueles com quem dormem.

Muitas outras servem aguardente e dançam para as tropas acantonadas, deitando-se depois com tantos quanto possam pagar por seus favores. É de longe que assisto a suas festas, vejo as saias rodadas subindo acima dos joelhos, as mãos dos homens enlaçando suas cinturas, as fugas dos casais para os escuros. São generosas com os soldados rasos, pois sabem que para muitos deles aquela pode ser a última noite em que dançam, bebem e se desafogam. A madrugada pode vir com a guerra em seus vermelhos. E as mais valentes delas lutarão como os homens, mais ferozes e impiedosas que os homens.

Uma legião maior segue de longe os batalhões e só se aproxima quando os homens acampados esperam o início da batalha. Carne salgada, pão e aguardente são as poucas iguarias que oferecem. Vendem também algumas coisas de segunda mão: pequenas armas, trancelins, medalhas, amuletos, alforjes, botinas e peças intactas de roupa. Por mais próximas que estejam, os soldados não as tocam. Alguma sombra nos olhos delas faz com que sintam calafrios de mau agouro.

Elas se vão e só retornam depois de terminada a batalha, quando a fumaça rasteira já permite ver os corpos mutilados e sem vida. Antes que os sobreviventes voltem para contar e sepultar seus mortos, elas reviram os bolsos dos cadáveres, despojando-os de tudo o que já não lhes servem: pequenas armas, trancelins, medalhas, amuletos. Aliviam-lhes também do peso inútil, levando seus alforjes, botinas e as peças intactas da roupa. Qualquer coisa pode render algum dinheiro quando oferecida aos soldados inimigos ou até mesmo aos aliados dos mortos. Elas fazem seu trabalho em silêncio, trocando sinais, andando agachadas, os pés descalços atolados em poças de sangue. Depois, deixam de ser aves de rapina e se transformam em animais de carga, puxando suas carroças pesadas com o fruto do botim em direção a outro acampamento.

Quando elas se vão, venho eu fazer o meu trabalho junto aos moribundos, apressando os desenlaces, encurtando as agonias. Mais do que dos olhos, é dos ouvidos que eu preciso para saber de onde partem os gemidos, a voz surda dos que chamam pela mãe quando sabem que vão morrer.

O meu ofício requer discernimento. É preciso reconhecer de que morte cada um deve morrer. Veja este homem aqui, ferido de lança, já quase sem sangue. Respira em dores e é com esforço que ouço seus gemidos. Precisa bem pouco de mim. Basta que eu cubra sua boca com a minha boca e feche com força suas narinas. Ele ainda vai se debater, seu corpo vai entrar em estertor, mas logo lançará dentro de mim o seu último suspiro. É a minha vez então de fechar a boca, trancar a respiração e deixar que o hálito da sua morte se transforme em vida dentro de meus pulmões. Depois, é com carinho que olho para o seu rosto que parece dormir, livre das dores que o mantinham vivo.

Agora é a vez deste outro, sem nenhum ferimento à mostra, mas quebrado em pedaços por dentro. Por certo, me dará mais trabalho. Primeiro, é preciso apertar-lhe a garganta. Já vi muitas execuções por enforcamento e sei que o enforcado ejacula antes de morrer. As mais velhas até diziam que em cada lugar onde se armou uma forca nasce uma flor branca, fruto da terra semeada pelo enforcado. Nunca vi, não posso confirmar. Ele me olha e o seu olhar é de alívio pela minha chegada. Mas tem um pouco de volúpia nesta gratidão, pois ele sabe, já ouviu falar, do meu ofício. É por isso que me entrega seu corpo sem contestação. Deixa que exponha o seu membro e me sente em cima dele. Depois me oferece o pescoço para que o enlace com meu cinto. E é bom pra mim assistir a sua cara de gozo e entrega enquanto aperto o laço. Aos poucos, sinto seu membro crescer sob minha fenda. Mantendo o cinto apertado com uma das mãos, com a outra agarro com vigor o membro que entumece e o coloco dentro de mim. Os olhos esbugalhados do soldado também se entumecem de sangue. A cada movimento meu, todo o seu corpo se entrega à cavalgada que o levará ao gozo final da morte. E quando já me faltam forças para o laço e o movimento, recebo dentro de mim o jorro derradeiro de mais um homem que estremece e morre sob os meus cuidados.

Assim, um a um, vou recolhendo suas últimas emissões, sejam de hálito, sejam de sêmen. É o que ganho em troca pelo trabalho de lhes aliviar a dor. Não pensem que faço isso por prazer. É a compaixão que me leva ao campo de batalha. Não há nada mais triste do que a solidão da morte.

Uma mulher jogou cada um destes homens no mundo, muitas mulheres lhes fizeram a cama, a uma ou duas dedicaram amor. Mas quando vêm a dor, a solidão e o medo de serem enterrados vivos, chamam pelas mães, mas é por mim que eles anseiam. Para que eu faça o contrário de um parto, recolhendo suas vidas para dentro de mim. Eu sou a última.

Ronaldo Monte

Nasceu em Maceió (AL), em 1947, viveu no Recife e em João Pessoa, onde se aposentou como professor do Departamento de Psicologia da UFPB. É psicanalista e autor de 14 livros de poesia, contos, crônicas e romances. Seu romance mais recente, A paixão insone, foi publicado em edição eletrônica pela Mombak.

Rascunho