A sereia?!

Conto de Juliano Moreno
Ilustração: Osvalter
01/09/2006

O que é o inferno? Pensei que fôssemos falar de mim? Como me tornei ela, mas vejo que seu retrato não é simples desenho. Vamos de tobogã pelos corredores dum labirinto, me agradam as curvas, os adereços sufocando as figuras, os cílios postiços das santas mexicanas, os lábios de cerâmica das bonecas de porcelana chinesas, os altares que, com seus anjos rarefeitos, esculpidos em ouro e madeira, representam o céu nas igrejas pobres, com infiltrações, manchas nas paredes, goteiras, telhas deslocadas, vítimas do vento que as lançam sem direção para em cacos comporem as ruínas. Você fuma? Se incomoda que eu fume? Bom, obrigada.

H…am?! Sim! Sim! O que é o inferno? É exatamente isso, o inferno são as telhas espalhadas em cacos pelo chão, é a ruína do paraíso, de um sonho, de um desejo, de um amor, por isso é insuportável viver nos seus círculos, diante da felicidade arruinada, ou minimamente diante da sua imagem, é impossível viver. Por isso, cada um deve ter o seu inferno próprio, muito particular, o próprio deus deve ter o seu, talvez… Acabou a pilha do gravador? Não?! Já voltou? Posso continuar? Está gravando? Quando era Carlos, usava um terno como esse que você está usando agora, da mesma marca, sempre fui muito exigente, olhava as costuras por dentro, o vinco, os ombros, odiava quando as golas perdiam o prumo do pescoço. Em Nova York há ótimas lojas de roupas, sabia que ainda há alfaiates em Nova York? Por isso que gostava dessa maçã, poder ter tudo, estar em todos os lugares, New York City era o meu Aleph, meu pequeno paraíso com prostitutas chinesas de lábios grossos, vestidas de carmim, perfumadas de ópio, seus pescoços suaves enfeitavam colares com diamantes perfeitos da África do Sul, a melhor cocaína colombiana provei em Nova York, o melhor charuto cubano, minha sala era cheia dessas quinquilharias japonesas e americanas que tornam tudo tão rápido e evanescente, e acima de tudo, lá é a cidade do dinheiro, das corporações, de Wall Street, talvez antes, para mim, não estar em Nova York fosse o inferno. Depois do atentado, não consigo lembrar os nomes das ruas, dos bairros, dos bares, é como se um arquivo tivesse sido deletado, zap, e pronto…. Não consigo mais dar um passo naquela cidade, meu inferno hoje é Nova York.

Vê essas marcas? Por debaixo do cabelo? São o mapa dos vidros que se cravaram aqui com a queda das torres. Eu saltei do elevador correndo, empurrando uma moça obesa que tropeçou, quando atravessei as portas de vidro, olhei a ruína me sentindo seguro, e zaz…, elas cederam, meu corpo foi lançado ao chão, vi a gorda sumir, pisquei e nem eu mais havia, três meses de coma, doze pequenas cirurgias. Sabe que não consigo falar mais uma frase em inglês, eu que estudei isso a vida toda, não consigo ler, ou escrever uma linha, sei apenas as palavras separadas, perdidas na sopa, na grossa sopa das minhas nuvens, das minhas cinzentas e turbulentas nuvens de gafanhotos vorazes com seu ruído estático devorando, pedaço a pedaço, essas memórias, mas a cabeça não é como uma caixa que você esvazia e enche ao seu gosto, é mais como papel queimado, que as beiradas enegrecidas lembram o papel ausente, o papel consumido pelo fogo, ou um quebra-cabeça em que vão sumindo as peças.

Sinto saudades das coisas brasileiras que perdi em Nova York, no soterrar da minha sala nas torres, as minhas coisas entre as ruínas, minhas ruínas entre todas as coisas soterradas, todos os corpos soterrados…Há dias que acordo e procuro meio sonolento, nas paredes, um quadro que era minha infância: uma moça com uma sombrinha amarela numa tarde azul (minha mãe) agitando um lenço branco para um barco distante, sumindo na curva do rio, o rio mesmo uma abstração perdida em cores e os tripulantes do navio um bando de pontinhos coloridos, pontinhos coloridos indo estudar fora, voltando para casa após negócios na cidade, levando encomendas para os bolichos nas cidades do interior, estrangeiros com seus chapéus panamás, misteriosos, fazendo pesquisas, falando suas línguas enroladas com palavras de som alongado e grave, marinheiros bugres que sabiam reconhecer todos os tipos de peixe de simples olhar as manchas do rio, dos fazendeiros em seus ternos pardos de casimira branca gasta, tão quentes que bastava ver para sentir uma terrível febre agonienta, em cima no mirante a cidade num adeus festivo, mãos congeladas com lenços agitando o bafo calorento duma tarde empestada do cheiro tão próprio do rio, cobra verde circundando, e eu lá um menininho vestido feito homem num terninho preto, suando todo desconforto possível que o calor podia proporcionar, mas feliz, distraído da tristeza da minha mãe que se despedia dele: meu pai. Tinha também uma escultura em madeira, barro branco e resina de abelha representando um índio como um totem observando. Em cima da cabeça dessa peça um cinzeiro em forma de peixe, tudo coisas mínimas, imperceptíveis, mas que compunham um jogo de particularidades, tatuagens de onde vim, além, uns ornamentos indígenas numa moldura de vidro encerrados, com penas num verde desconhecido dos nova-iorquinos, um verde só daquelas penas trabalhadas por uma mão bugre hábil, e ciente dos dólares que aquela falsa relíquia valia.

Um dia antes do atentado sonhei com um ninho de pássaros gordos, não sei de que tipo, bicavam umas coisinhas roliças que pareciam olhos quando uma serpente abocanha todos de uma única vez, assim que ela se vira pra mim dando o bote, minha visão se enche de fogo e acordo. Estivesse no Brasil, teria jogado no bicho ou comentado com a empregada, sei lá, mas lá não valia nada para mim qualquer sonho, o mais certo é que se o sonho insistisse, consultaria secretamente um bom psicanalista, hoje se sonho de novo um troço desses, me escondo três dias em casa, e mesmo não sendo um pingo religioso, rezaria mil vezes o terço diante do são Benedito de minha Vó.

Meu escritório era com aquelas janelas enormes em vidro escuro, que só permitem a visão de dentro para fora, adorava me virar para aquelas janelas enquanto minha secretária chinesa chupava meu pinto latino, estávamos nós dois curtindo quando vimos o avião trombar com a outra torre, nem nos vestimos, ela desceu de calcinhas, e eu, apenas com minha cueca samba-canção de morenas peladas com as bocetinhas arregaçadas, o desespero era tanto que nem me perceberam seminu, não gargalhe, teria morrido se tivesse me preocupado com as roupas, hoje tudo vai tão neblina nessa coisa de sexo, era um machão, cheio de panca, charme e papo, hoje me confundem as bocetas e os caralhos, depois que me tornei ela, por enquanto, quem topar, foi, virei trapezista, acrobata sem rede de segurança girando o corpo sobre a delícia dos penhascos.

Se acho que foi o barbado de turbante? Só se fosse retardada, pareço maluca quando digo, mas é a mais pura verdade, isso é coisa da CIA, no mínimo da omissão da CIA, mas deixa isso em off porque os americanos tão pagando uma indenização legal que não me permite ficar dizendo coisas assim absurdas, pode gravar, sim lógico que foi o filha da puta de turbante, morte a ele, Ah!Ah!Ah! Aceita guaraná? É natural, foi a Dita, minha atual secretária, quem fez pra servir com o bolo de queijo. Não, isso que você está comendo é bolo de queijo. Pão de queijo é coisa de mineiro, delícia, né? Vamos para debaixo da mangueira? Receita de minha Vó, depois te envio por correio eletrônico. Se demorar, não se preocupe, sou ruim de mandar cartas, mesmo as eletrônicas, com seus erros e rapidez, queria logo é que tudo se resolvesse numa pancada, por telepatia. Dizem que a paz, só vai ser possível, quando todos nos falarmos apenas, através das tais ondas telepáticas.

Como foi o coma? Desculpe-me, mas é como se você me perguntasse como ando, diria impertinente: com as pernas. Não há muito que dizer do coma. Às vezes via as pessoas, os poucos amigos que iam me visitar, ouvia sem entender o que diziam, suas saudades e lamúrias, seus comentários, às vezes surgiam completos estranhos e ficavam falando comigo horas, como se eu fosse uma espécie de padre de romance do Graham Greene, fora os sonhos que se repetiam e continuavam, saltava entre uma realidade e outra, misturava as duas, vivi os três meses entre elas, exatamente no meio duma zona cinza, um quarto branco de gelatina que mudava ao meu toque e me mostrava o mundo lá fora. Lembro de um senhor negro, carioca, que lia crônicas do Rubem Braga, era uma espécie de voluntário, sei lá, a enfermeira que cortava meus cabelos dizia sempre que eu era muito bonito, se ficasse com o cabelo grande pareceria mulher, mal sabia, coitada! Parece piada. Uma outra que era mexicana orava toda noite em meu quarto para Nossa Senhora de Guadalupe, não sei se delírio ou verdade, mas um dia me espantei com ela se masturbando pelada na minha frente, orando em meio à siririca, mas, mais perto do despertar, deixei essa realidade e meus dias e horas eram uma vida toda ou mais num infinito saguão de um aeroporto imaginário, com chamados incansáveis por pessoas desaparecidas de seus vôos, com estrelas e suas multidões caninas, loucas por autógrafos, gente de todo lugar possível indo para qualquer parte, vindo de qualquer parte.

Sempre um rapaz me parava e oferecia umas caixinhas de fósforo com poesias, eu tirava a mesma nota e comprava a caixinha, as poesias eram sempre diferentes, um outro com cabelos arrastando no chão, e até onde me lembro, tinha por roupa apenas os próprios pêlos e uma tanga, ficava discutindo literatura comigo, adorava Ricardo Guilherme Dicke com sua cabalas e sertões, e incansavelmente dizia que o Dicke agora escrevia para teatro, gostava de Lucinda Persona, poeta que hoje se tornou minha amiga, e contava umas histórias misturadas com gente que eu conheço que parecem contos do Aclyse de Mattos, e quando se despedia sempre mandava lembranças para o doutor Ivens Scaff, pedindo que eu cobrasse dele o poema sobre as mil mangueiras. Quem me fazia companhia nos almoços era uma moça gigantesca que tinha pelo menos uns três metros, e cega, segurava em meu pescoço, seu normal era o mais absoluto silêncio, parecia uma freira no claustro, apesar de satisfazer minhas necessidades sexuais com muita solidariedade, quando batia um sino que soava quando os relógios digitais zeravam, começava a recitar trechos inteiros em grego da Odisséia, não me pergunte como sei que aquilo era grego e pior que era a Odisséia, se aqui já é estranho e inexplicável, imagine lá, nessa zona cinzenta sempre em crepúsculo, nesse aeroporto que era um planeta inteiro, que por ser infinito era um nada. Mais perto do meu despertar tudo começou a ter um movimento acelerado como quando pegamos o vídeo e apertamos uma daquelas setinhas, o teto do saguão foi inundado por lesmas que quando caíam explodiam num portal que fazia desaparecer alguém, comecei a ter um medo terrível dessas lesmas horrorosas, principalmente porque quando atingiam alguém na cintura, essa pessoa ficava dividida entre duas dimensões e quase sempre tinha o corpo rachado ao meio, passava a viver se arrastando ou sendo arrastado dependendo da parte atingida. Passei a me esconder debaixo das cadeiras, a moça cega perdeu seu guia e começou a desaparecer, vítima das lesmas, meu único companheiro passou a ser um cão com cara de gente que recitava Baudelaire e se chamava Bruno, foi ele que me contou as histórias do meu primeiro romance. Ele era um buldogue e babava muito, tanto, que tinha horas que eu não entendia nada do que falava. O primeiro capítulo era uma espécie de história de hospital sobre um rapaz em coma, por que será? Oh! Oh! Oh! O segundo falava de um escritor gay morto e o terceiro foi o que virou o inicio do meu romance sobre a década de noventa.

Até que uma das lesmas me atingiu e então me vi num avião onde as aeromoças não tinham rosto, os pilotos usavam turbante e diziam o tempo todo pelo alto-falante: “Olhem pela última vez a estátua da liberdade” e mergulhavam no ar fazendo piruetas, numa dessas sentou-se um sujeito pequeno ao meu lado, pequeno do tamanho dum polegar e começou a me explicar sobre Pascal, o filósofo francês que escondera Deus, quando finalmente, após eternidades de uísque quente, ele entrou na minha cabeça pelo ouvido; despertei em Cuiabá, na casa de minha Vó sem saber o que tinha acontecido, sem saber como não era mais Carlos, sem saber por que havia me tornado ela e ninguém achava isso estranho.

Conforme voltava a consciência, minha Vó ia me explicando tudo, do desastre nas torres, das operações, do seguro que um advogado americano estava lutando para receber, de como me trouxeram de Nova York, ela e meu primo e no final da conversa disse “Vai ter que mudar de nome, querido, com essa boceta no meio das pernas não dá pra continuar se chamando Carlos”, antes de falar como os cientistas vieram e me viraram do avesso, como passaram suas ressonâncias magnéticas, seus bisturis laser, seus preparados de cobalto, seus ácidos e cromos, cobrindo meu corpo com sua linguagem pirata que rouba, que toma posse das coisas, e torna gente coisas, antes vamos à cozinha tomar mais um guaraná?…

Levantamos e ela pediu que eu fosse a frente, o corredor por aonde seguíamos de tão grande parecia não levar a lugar nenhum, as paredes tinham quadros como um corpo com marcas de doença, um corpo que antes de corpo era o indício, uma peça de investigação, em todos um morro como um seio, e sempre pescadores em suas festas, um dos quadros tinha uma sereia, ferozmente bela com dentes de caititu na sombra, uma sereia quase uma jibóia, cantando com cabelos desalinhados num rio vasto e tão azul, que o azul deveria ter um outro nome, eu um jornalista lá daquilo que era para ser metrópole, estava ali perdido como que encontrado, e o espanto era o calor sufocante e terrível desse corredor dando voltas e eu sem ver minha anfitriã sem olhar para trás encantado com a cor e o movimento dos quadros explodindo nas paredes, ia me esquecendo que essa entrevista era apenas um disfarce, que o que eu queria era saber do tal sujeito do bicho, da droga, do ilegal, que eu estava ali no farejo, que antes de tudo eu era o cão atrás …. nem sei de que… por deus topei com tatus de dois metros esculpidos em madeira rústica nesse corredor, infinita reta, elipse que não se fecha e vai girando helicoidal, num canto perdi minhas chaves, noutro deixei meus sapatos, quase nu topei com uma porta de madeira pesada que ela sem que eu me virasse abriu fungando meu cangote liso e frio, lá dentro uma índia nua, bugre linda, me ofereceu como quem dá uma bordunada na nuca de europeu, ou quase, porque o que é um paulista além da sombra de uma saudade pela Europa, um copo de água turva e sorrindo falou “Guaraná….” as duas gargalharam arrancando os trapos que foram minhas calças de shopping center, e a índia sugou meu pênis como quem bebe vinho no ubre de uma vaca, enquanto minha entrevistada lanhava tiras de minhas costas, surgiu um espelho, então vi que ela era como se nunca tivesse sido homem, que ela era uma ausência me corroendo e agora se transformava mais uma vez agarrando minha cintura, com gentis dentes pontiagudos, brilhante globo multicolorido, roçando cheia de pêlos minha orelha, antes de sobrar apenas o eco e não poder saber mais a diferença da labareda, do gelo, do mormaço, da sombra, ela, não mais ele, ele não mais ela repetiu suave aos destroços “Aceita mais um copinho de guaraná….

Juliano Moreno

É editor da revista de poesia Fagulha e organizou a coletânea de contos Na margem esquerda do rio: Contos de fim de século, publicada pela Via-Lettera.

Rascunho