Sempre ouvi dizer que Wesley M. Trigueiro era um homem desprezível, que não merecia sequer um aperto formal de mão, quanto mais um ato de fidalguia. Tal repulsa parecia quase uma unanimidade, ainda que seus ensaios odontológicos guardem uma afetada arquitetura (que, alguns consideram, se deve mais à adulteração que à sofisticação) e ainda que ele, esbelto, escanhoado e cheio de mesuras, se apresentasse como um nobre cortês que, confuso com o folhear dos séculos, veio parar em 2004.
Trigueiro, alegando falseamento intelectual, já entrou na Justiça contra leigos (como eu) que se aventuraram a escrever a respeito de seus estudos científicos. Ensaios técnicos, sobre os sisos, os caninos, os incisivos e as gengivas que, por motivos que escapam à análise mercadológica e, sobretudo, ao bom senso, passaram a vender tanto quanto os romances de aventuras, ou os folhetins policiais.
Não há como negar que os escritos de Trigueiro guardam certo estilo, ainda que rangente e aborrecido. No meio médico eles já foram, algumas vezes, associados ao charlatanismo, apesar de seu doutorado em Madri e do punhado de leitores que o veneram como a um santo. Existem relatos, tocantes, de curas que a simples leitura de seus livros já teria produzido — e curas não apenas, ou quase nunca, na área da odontologia, mas das finanças, do casamento e da vida interior! Trigueiro, sem perder a compostura científica, sempre desprezou essas histórias como “fantasiosas”, e até insultuosas. Tais abusos, é verdade, podem atingir a honra de qualquer escritor, e nesse aspecto não chego a considerá-lo um culpado, mas só uma vítima.
Pois Trigueiro, denso e imprevisível como um caminhão desgovernado, atravessou meu caminho. Isso quando, por motivos profissionais, e nenhum outro, eu tive que visitá-lo. Havia, desde logo, um perigo objetivo: adepto do pugilismo como técnica extrema de relaxamento, Trigueiro era conhecido pelo número de vezes em que encerrou uma polêmica com um murro. Seus detratores afirmam que, dentista inspirado, ele era também um psicopata. O problema é que seus detratores, em geral, são sujeitos rancorosos e de maus hábitos, como a Sra. Uga Salmão, a mesma que surrupiou versos do poeta grego Nikolaidis, os traduziu e depois assinou como seus; ou o crítico de moda F. Klin, tão inocente quanto um punguista e cuja mente, pelas torpezas que oculta, e apesar da peruca prateada que a encobre, se parece, na verdade, com um pudim azedo. Tais inimigos acabavam por depor não contra, mas a favor de Trigueiro. Ainda assim, e apesar de todas essas ponderações, se eu queria conhecer o verdadeiro Wesley M. Trigueiro, tinha que correr o risco de visitá-lo.
“Ele vai provar do veneno do Trigueiro”, ainda ouvi a senhorita Taylor comentar, a boca não tão pequena, quando eu caminhava em direção à garagem da redação. Mas foi o que fiz, sem dar crédito às provocações. Carregando essa mistura de interesse e repulsa, e por obra da Revista Científica Kellogs, consegui que Trigueiro me recebesse para uma entrevista particular. Não sobre seus ensaios de odontologia, que eu não nasci ontem; mas uma conversa informal para a seção de variedades, destinada à coluna “O gênio em sua garrafa”, espaço psicológico semanal que pretende flagrar, no traçado da intimidade, as pegadas dos grandes talentos. Pura tolice jornalística, mas isso não me cabia discutir, me cabia simplesmente fazer.
Trigueiro só me recebeu porque é amigo pessoal do Dr. Tortilho, o dono da revista; e Tortilho, que é dado a simpatias infundadas, gosta de mim desde o primeiro dia em que, ainda como estagiário, pisei em sua redação. Sempre que desce ao segundo andar, o que quase nunca acontece, Lúcio Tortilho se dirige à minha mesa, e me faz algumas perguntas de caráter literário — coisas como a grafia correta de “soçobrar” (ele já reconheceu sua tendência hereditária a multiplicar os esses), ou se deve escrever mesmo “gervão” (a planta que, dizem, guarda virtudes mágicas) com ge, ou com jota. E, o que é mais notável, sempre reage com emoção aos meus esclarecimentos.
Mas, como seus olhos, nesses momentos, passeavam (como poodles mal-amados) pelas mesas vizinhas e raramente se fixavam sobre mim, guardei a impressão (a certeza, mas é arriscado afirmar!) de que, enquanto falava, Tortilho pensava em outra coisa ou, para ser mais claro, se dirigia a outra pessoa que, certamente, não estava ali. E que seguramente não sou eu. Sentia-me usado, mas já me disseram que é bom sinal ser manipulado pelos chefes, e que a simpatia do diretor confere prestígio; uma notoriedade vaga, de valor duvidoso, tanto que, na semana passada, como prêmio, fui o escolhido para entrevistar Trigueiro. E lá fui eu, com a rapidez das mulas e a coragem da avestruz.
Esticado numa chaise-longue e folheando uma revista de palavras cruzadas, Trigueiro estava tão desinteressado em minha presença que foi até capaz de, mastigando um chiclete anódino (eu), ou desprezando uma secreção matinal (ainda eu), responder a meia-dúzia de perguntas que, aos gaguejos, cheguei a formular. “Por que seus estudos científicos vendem tanto?” — “Porque o destino assim deseja”, ele respondeu, com brilho cintilante. “O sucesso pode ser atribuído à proliferação de problemas dentários?” — “Se você não é capaz de ir além da mandíbula de um homem, não é digno da profissão que abraça”, outro exemplo nobre. E me esforço aqui para poupar meu leitor dos momentos mais vexatórios.
Até que, grande asneira, me veio a idéia de perguntar a Trigueiro a respeito dos milagres que, dizia-se, a leitura de seus livros era capaz de produzir. Não chegou a me olhar: ergueu-se, abanou o jaleco espantando moscas inexistentes, deu meia-volta militar e desapareceu no corredor que levava aos quartos. E lá fiquei eu, aboletado numa cadeira austríaca e chacinado por sua ausência, que pesava mais que a presença até ali tão primaveril, sem saber o que aquele gesto abrupto significava. É claro, ele não chegou a apreciar minha pergunta. E aquele fora um movimento enigmático, digno de Wesley M. Trigueiro, eu tinha que reconhecer. Um de suas extravagâncias, uma das charadas com que ele costumava testar seus pacientes, daí talvez a fama de milagreiro. Não sabia o que aquilo queria dizer, e provavelmente nada queria dizer. Ainda assim, porque estudei com jesuítas e sofro de timidez congênita, resolvi esperar. Por delicadeza, eu esperei, só por isso.
E por delicadeza me transformei, ou fui transformado, num assassino. Explico: quase uma hora depois, achando que a situação se avizinhava do ridículo, resolvi, pé ante pé, como num museu e se calçasse sapatilhas de flanelas, atravessar a sala, esgueirar-me até a porta, uma lesma nojenta, repulsiva até para si mesma (eu), e por fim girar a maçaneta. Estava aberta, e tudo foi muito simples: deixá-la entreaberta para evitar ruídos, chamar o elevador, descer encolhido a um canto embora estivesse sozinho, correr até o carro da revista, estacionado a meia-quadra dali, e tratar de sumir.
Voltei direto à redação, pois minha entrevista devia estar escrita antes da meia-noite. Às oito da noite, para ganhar forças, fui jantar no Nicolas, com Marinise, como costumo fazer, e sempre sem sucesso, porque ela me ama, mas me ignora. Voltamos à redação, não por minha escolha, antes das dez. Ao me ver pisar na ante-sala, a senhorita Taylor me disse, sem conter um sorriso de prazer: “Dois policiais o esperam na redação. Parecem nervosos. Deve ser grave”.
No fim daquela tarde, Wesley M. Trigueiro foi encontrado no chão de seu quarto, asfixiado por um saco plástico grosso, desses que servem para a coleta de lixo industrial. Foi uma morte áspera e cruel, a julgar pela descrição oferecida, no dia seguinte, pelo obituário de O Dia de Ontem. E eu, logo eu, trinta quilos mais leve que ele, com os braços roliços de pianista, com essa asma que não me deixa, logo eu, que fiz perguntas previsíveis e só deslizei quando não resisti e então quis saber dos aspectos mágicos de sua odontologia (mas será isso? a causa foi mesmo essa?), agora sou apontado, logo eu, como seu assassino. E daqui, da prisão estadual do Cotolengo, a mais moderna do Paraná, deitado numa cama de cimento e tendo como paisagem ilustre uma latrina amarela, daqui, do que me resta de forças e de vergonha, do que sobra de mim, eu vos escrevo, sem saber o que chego a esperar.