A palestra

Crônica de Flávio Izhaki
01/08/2009

O auditório lotado, 400 pessoas. O escritor tem o almoço na barriga, o blazer pesando nos ombros, muito calor. Estaca na porta, a vista da maioria, esperando ser anunciado. O público nota sua presença, burburinha, uma fã afoita levanta de sua cadeira e filma o escritor sem falar nada. Ele está constrangido, mas não esboça reação; alguém bate em seu ombro e diz: “Vamos?” Ele entra. Não que quisesse aplausos, mas esperava-os. É sempre assim. Mas não desta vez, a recepção é apenas o aumento do burburinho, um zumbido de 400 vozes, nem o silêncio respeitoso que algumas vezes recolhe sua sombra quando ele passa. O escritor tem uns pensamentos esquisitos e pensa numa gangorra de parquinho infantil: o burburinho significa que o respeitam ou o admiram mais? O escritor pensa muito nessas coisas em momentos como esse, em que está prestes a falar para 400 pessoas.

Acomoda-se.

Ao seu lado, duas professoras-doutoras especialistas em sua obra, a carreira pautada em sua carreira. A da direita, de quem não sabe nem o nome, bebe água sem parar. A da esquerda, que conheceu na noite anterior no jantar em sua homenagem na embaixada, de quem deveria saber o nome mas não lembra, testa o microfone.

Uma das professoras, a da esquerda, que agora que abriu a boca em sotaque do país do escritor ele lembra o nome, lê os principais prêmios que ele recebeu, cita todas as obras, cronologicamente, não esquecendo a data de publicação. O escritor olha para o último dos presentes, fileira Z, mas seu olhar não alcança; não olha para ninguém. A primeira pergunta o desconcerta pela imbecilidade. Ele bufa. Responde, como sempre faz, contando como começou a escrever. A resposta ensaiada por anos contém uma piada-teste; todos riem. O autor já deu palestras suficientes ao redor do mundo para saber que daqui em diante o público estará em seu bolso e nada do que for dito importará. Termina sua primeira resposta com seu mantra: “O importante é o livro, não o autor”. Acredita piamente nessa assertiva. Mas sabe que o público está lá por ele, que a maioria não leu seus livros, nenhum dos 17. Precisa do mantra para que o público leia na resposta sua frustração.

A professora da direita, a qual ele não sabe o nome, gagueja-lê uma longa pergunta dividindo seus livros, e novamente os 17 são citados com data e tudo, em ciclos, apoiada em uma teoria de um crítico do país do escritor, e pergunta para ele sua opinião sobre. Ele refuta. Pergunta, irônico, como pode responder aquilo que lhe é perguntado. Agora sim o silêncio. Ele continua, agora ataca os críticos literários, faz uma piada, o auditório, cheio deles, ri, alto, amarelo. O escritor pensa na gangorra e chega à conclusão definitiva: me admiram. Confiante, continua: “Quando escrevo”, diz, “O que escrevo”, corrige-se, “vem de uma região que não entendo ou conheço”. O escritor quer encerrar a resposta com uma frase definitiva, busca agora os aplausos, a consagração. Respira e vaticina: “O escritor tem que estar à frente do seu tempo”. Os aplausos não vêem, platéia difícil, mas os olhos vidrados significam sua vitória. O público o reverencia. Mesmo os que não o leram — e ele não esquece que devem ser a maioria — o temem, o admiram; neste caso, sinônimo.

Ele encerra a resposta, mas ninguém ousa falar nada, as duas professoras olham para ele com olhar de adoração. Forçosamente, ele continua, a mesma-outra história: “Uma única vez fui a um congresso sobre minha obra. Escutei de um especialista o que se passava na minha cabeça quando escrevi meu famoso livro. Assustei-me. Não era nada daquilo. Mas me deu uma vergonha, por mim e por ele, e nada falei. Assenti, placidamente, e fui para casa entendendo minha obra ainda menos”.

A pergunta seguinte, lida de uma folha de papel amassada, repetia exatamente tudo que o escritor negara na resposta anterior. No passado, o escritor bufava da estupidez alheia, agora sorri. Começa a citar histórias, passagens, memórias, e então, com toda desfaçatez que acumulou, fulmina: “O que a senhora me perguntou mesmo?” A professora ensaia repetir a pergunta, falando devagar para ele compreender, julga-o surdo. Mas ele se antecipa: “Se você me pergunta como funciona minha vesícula, também não saberei responder. Mas de todo modo ela funciona”. A professora se constrange, o público se constrange. Não o escritor. “Só a um autor pode ser perguntado o que ele quis dizer com aquilo que escreveu. E só ele pode responder: Não sei. É impossível responder”. O público concorda com outro silêncio.

A professora que ele supostamente sabe o nome avisa que o tempo terminou, só uma última pergunta, da platéia. Uma senhora levanta a mão, no meio da sala, e berra sua pergunta de lá mesmo. O escritor não entende, e pede para que a professora repita para ele: “Ela pediu para que o senhor fale um pouco do seu país”. O escritor faz cara de sofrimento. Sofre verdadeiramente. “Não peça coisas assim. Eu não fiz coisa alguma para a senhora.”

O escritor levanta, a palestra termina. A multidão avança em busca de autógrafos e dedicatórias, livros em punho. O escritor procura o ouvido de uma das professoras. Ela avisa, ao microfone: “O autor fará um intervalo de 10 minutos, depois vai assinar seus livros, apenas seus livros”.

O escritor acena e sai da sala. Logo mais ainda jantará com o cônsul e a esposa.

Flavio Izhaki

Nasceu no Rio de Janeiro, em 1979. É autor do romance De cabeça baixa. Co-organizou e participou como contista do livro Prosas cariocas  uma nova cartografia do Rio de Janeiro e das antologias Paralelos  17 autores da nova literatura brasileira e Contos sobre tela.

Rascunho