A palavra perdida

Conto de Mário Araújo
Ilustração: Theo Szczepanski
01/12/2011

Juarez disse que amanhã, quando o chefão chegar, vai acabar com essa… Foi então que Juarez usou a palavra, a palavra de que Álvaro não se recordava. Por mais esforço que fizesse, a palavra não vinha, e Álvaro decidiu chamá-la provisoriamente de balbúrdia. O chefe chegaria de viagem para pôr fim àquela balbúrdia, murmurou para si mesmo, esperando que logo aparecesse a palavra verdadeira. Esta era muito pior, sem dúvida, e por isso o ofendera tanto. Qualificar daquela forma o trabalho que ele desenvolvia com tamanho zelo. Um absurdo!

Precisava da palavra para contar à mulher, no sofá. A mulher tinha um olhar compreensivo, mas não o bastante, pois a palavra não era a correta. Encheu-se de expectativas para o jantar: talvez de estômago cheio, ou mesmo enquanto mastigasse, com o movimento dos músculos faciais a palavra escorregaria do esconderijo em sua cabeça para a boca, e daí para fora.

Na hora em que a ouviu, na sala do subchefe, não quis retrucar. Preferiu engolir a raiva devido à presença de Clóvis, colega dado a salpicar de cascas de banana o chão alheio; se protestasse, o colega teria munição para atacá-lo em mexericos de corredor. Assim, Álvaro saiu da sala com a palavra ultrajante debaixo da língua, como se a estivesse guardando para mastigar ao longo do dia. Prometia a si mesmo retornar mais tarde para, a sós com Juarez, reivindicar um tratamento mais respeitoso. Ao chegar à sua mesa, porém, a palavra havia sumido, como um veneno que tivesse se dissolvido na sua saliva; a palavra se esquivava de ser pronunciada e, portanto, esconjurada.

Depois de um jantar em branco, com um amigo ao telefone recorreu novamente a balbúrdia, dessa vez acompanhada de sinônimos, como bagunça e baderna, mas nenhum deles servia. A conversa versou também sobre outros assuntos, nos quais Álvaro não conseguiu se concentrar. Debaixo do chuveiro, refrescou-se pensando na reparação que exigiria do subchefe, no conjunto de qualidades que possuía e que tornavam injustificado o uso da palavra terrível. Mas para isso era fundamental lembrar-se dela. Dela. Não podia aceitar refugiar-se em paráfrases, diluir sua revolta em metáforas. Tinha que ser claro e objetivo. Poderia até mesmo fechar a conversa com o pedido de demissão que há muito acalentava.

O encontro do corpo com a toalha limpa e macia, porém, neutralizou a aspereza dos pensamentos de Álvaro. Já de pijama, reconsiderou o pedido de demissão e, enquanto ajeitava o travesseiro, a exigência de uma retratação pareceu-lhe ridícula. A mulher respirava em paz, o rosto voltado para o outro lado, as costas serenas. Com a luz apagada, entregou-se à prece que antecedia o sono de todas as noites, ao mesmo tempo em que procurava pelos quatro cantos da mente a palavra perdida. Concluiu que esta se extraviara de propósito para protegê-lo de uma atitude tresloucada, e em meio à oração logo surgiram expressões de agradecimento pelo extravio. Enfim, deu a palavra por definitivamente desaparecida e, sentindo-se a salvo da própria imprudência, adormeceu.

Mario Araújo

Nasceu em Curitiba (PR), em 1963. É autor dos livros de contos A hora extrema e Restos.

Rascunho