A operação stop

Conto de José Leon Machado
José Leon Machado, autor de “Não me guardes no coração”
01/11/2005

O Fontes, pai de cinco filhos todos casados e há muito fora da sua alçada, era reformado da GNR que ocupava os seus dias, após a leitura do Correio da Manhã, a amanhar a horta e o jardim que tinha à volta da casa situada nos arredores da cidade. Era uma vida pacata e os únicos sobressaltos eram mesmo os escândalos veiculados pelo jornal ou os desastres noticiados pelo telejornal à hora do jantar. Uma vez por outra um filho ou uma filha telefonava de Lisboa a perguntar se tudo estava bem, para dizer que vinha ou não vinha pelo Natal, ou para informar que o miúdo mais novo estava de cama com gripe. Mas quem atendia era a Dona Lucília, que transmitia ao marido o que era menos inquietante, não fosse estragar-lhe a digestão, pois ele preocupava-se demasiado com o bem-estar dos seus.

Um dia, pouco depois da hora do almoço, telefonaram-lhe do quartel a informar que tinha falecido o cabo Diamantino, um colega da GNR, também reformado, e que o funeral se realizaria no dia seguinte, ao fim da tarde, da capela de Santa Eufémia para o cemitério de São Lázaro. O Fontes agradeceu sabujamente a informação e, ao desligar, pensou que não o deveria ter feito, pois nestes casos era obrigação dos serviços da Guarda avisar todos os camaradas, mesmo não estando no activo. Disse à mulher que no dia seguinte ia a um enterro e que lhe preparasse o fato escuro, a gravata preta e uma camisa branca. Dos sapatos tratava ele. E pouco seria a tratar: uma engraxadela bastava. Arrotou o vinho e o entrecosto do almoço, bocejou e foi-se deitar no sofá a ver se lhe passava a preguiça que sempre lhe dava quando a mulher grelhava entrecosto, pensado vagamente que essa letargia lhe vinha do fumo do grelhador que se entranhava em casa, sem nunca imaginar que pudesse ser do vinho tinto da adega cooperativa de Valpaços que ele comprava a granel a um comerciante seu conhecido em que recaíam suspeitas de falsificação de bebidas alcoólicas, nomeadamente vodkas, uísques, martinis, brandys, conhaques, bagaceiras velhas e água de luso da torneira.

No dia seguinte, depois da sesta, refrescou a cara, vestiu a fatiota e lá foi ao enterro do ex-colega, dizendo à mulher que ainda voltaria a tempo do jantar. Por isso que o tivesse pronto.

Estacionou o carro junto à capela de Santa Eufémia e foi fazer uma visita ao morto e dar os pêsames à família. O cabo Diamantino, deitado na urna, ao contrário do que seria de esperar em situações destas, estava com óptimo aspecto. Vestido com a farda de cerimónia, bem barbeado e de cara rosada, parecia transpirar saúde. Engordara um pouco nos últimos anos e o casaco da farda, com fitas e divisas, ficava-lhe um tanto apertado. Mas como estava de barriga para cima, quase não se notava. As mãos postas em oração e com as contas de um terço à volta dos dedos, estavam calçadas com umas luvas brancas.

O Fontes esteve ali alguns minutos a olhar para o ex-colega e a recordar-se do tempo em que faziam serviço juntos. Foram centenas e centenas de operações stop durante mais de vinte anos, com milhares e milhares de multas. Chegaram a ser louvados pelo comando. Havia semanas em que o volume de multas dava e sobrava para pagar os salários e as ajudas de custo e de representação de todo o batalhão.

O Diamantino era um dos melhores na caça à multa. Não perdoava. E se algum infractor tinha a tentação de o contrariar, dizendo que não ia em excesso de velocidade, que o balão de medição alcoólica estava estrago ou que não tinha pisado a linha contínua, dava duas voltas à viatura e arranjava mais duas ou três razões para o multar, ora pelo cano de escape roto, ora pelas luzes fundidas, ora pela placa de matrícula mal colocada, ora pela falta da cadeira do bebé, ora por qualquer coisa que não lembraria ao diabo, excepto a ele e ao calhamaço do código de trânsito.

Um dia apareceu-lhes uma professora — lembras-te, Diamantino? — que, ao fazer a curva perto do local onde eles costumavam estacionar o carro de serviço, pisou a linha contínua. Vinha em excesso de velocidade e, para desfazer a curva, puxou a viatura para o lado direito, sujeita a chocar de frente com outro carro. Eles fizeram alto e a tipa encostou. O Diamantino aproximou-se a passo lento, bateu com os dedos na pala do boné e pediu-lhe os documentos. Como o Fontes não era o chefe do carro, ficava sempre ao lado, a dois ou três metros, ou então a mandar seguir o trânsito, mas sempre atento ao que se passava, para proteger o camarada em caso de reboliço e para servir de testemunha. Ela não sabia onde tinha metido os documentos. Vasculhou na maleta, no porta-luvas e acabou por dizer que se tinha esquecido deles em casa. O Diamantino sacou do bloco e pediu-lhe os dados. Disse que era professora de uma escola ali perto, que estava atrasada e que a operação stop só lhe estava a complicar a vida. Que tinha de ir para um exame e, que se faltasse, era um problema. O Diamantino, muito calmo, e demorando a vista no decote que ela exibia sem grande pudor, disse-lhe que deveria ter saído mais cedo de casa. Se assim fosse, não teria, em primeiro lugar, sido apanhada numa operação stop, e, em segundo lugar, não chegaria atrasada ao servicinho. A gaja desculpou-se com um filho, que teve de levá-lo à escola. — E tu passaste-lhe a multa pela linha contínua, não foi, ó Diamantino? Ela pôs-se a chorar, a ver se te comovia. Disse que não podia ser multada, pois ficaria sem a carta. Era já a segunda vez em poucos meses pelo mesmo motivo. E pediu que tu lhe perdoasses a multa, ou então que pusesses outro motivo qualquer, pois de outro modo, ficando sem carta, não teria como ir para o emprego e como levar o filho deficiente à escola. Era a ver se colava. Mas tu, nada. Continuaste a escrever e a dizer que não podia ser, que tinhas de cumprir o teu dever. Então ela mudou de estratégia. Limpou as lágrimas à manga da blusa e perguntou-te quanto querias, que estava disposta a pagar para tu rasgares a multa e esqueceres o assunto. Enfim, queria-te corromper. Eu então aproximei-me, a lembrar a minha presença. Ela olhou para mim a pedir-me cooperação, que o bolo também era para mim.

— Não, minha senhora. Está enganada a nosso respeito — disse o Diamantino com ar solene e autoritário. — Não aceitamos subornos dessa natureza.

Ela ficou um bocado confundida. Parece que tinha ouvido dizer que todos os guardas eram corruptos e por dinheiro eram capazes de vender as próprias botas. Mas estava enganada com o Diamantino. Foi então que percebeu que ele olhava com certa cupidez para o decote.

— Mas posso compensá-los doutra maneira, se me fizerem o favorzinho — disse ela pestanejando como se as lágrimas se tivessem secado por acção do calor tropical.

— Ai sim? E como? — quiseste tu saber.

Eu não deveria estar aqui a recordar isto, ó Diamantino. Tanto mais que está aqui a tua mulher e as tuas filhas. Mas veio-me à memória e não posso evitá-lo. Tanto mais que não é nenhum desprestígio. Bem pelo contrário. Nunca te deixaste tentar pelo demónio do dinheiro, como muitos de nossos colegas que agora andam a prestar contas nos tribunais, acusados de abuso de autoridade, corrupção e suborno. Que mal tem receber de uma mulher aquilo que naturalmente ela nos quer dar?

Daí a segundos a mulher abria a porta do carro e saía. Era uma bela mulher, não há dúvida. Devia andar pelos trinta anos, bem torneada, um pouco pálida para o meu gosto, mas muito, muito atractiva.

— Pode ser no vosso jipe? — perguntou. — Deve haver mais espaço.

Depois olhou para mim e acrescentou:

— A seguir vai aqui o seu ajudante.

E lá foi cada um por sua vez. O serviço foi feito com bastante limpeza e não fomos interpelados por ninguém. E afinal quem nos iria interpelar? Os automobilistas passavam na estrada com muito respeitinho, a ver se escapavam de serem mandados parar. Além disso, enquanto um de nós fazia o serviço, o outro vigiava. A operação correu lindamente e a gaja, ao arrancar confiante de que não seguiríamos com a multa, ainda nos disse que foi um prazer e soprou-nos um beijo. Cá para mim, ela andava mesmo necessitada daquilo. E como nós nunca nos deixávamos corromper, daí a quinze dias ela recebeu a multazinha em casa. Bons tempos, ó Diamantino, bons tempos.

O Fontes deu um suspiro discreto e depois pôs-se a reflectir na diferença entre estar vivo e estar morto. Entre um estado e o outro o passo é muito curto. Estamos agora vivos, e, por um acaso qualquer, no minuto seguinte poderemos estar mortos.

Pegou no hissope aos pés do morto, aspergiu o caixão com água benta para afastar as moscas que por ali cirandavam e foi dar os pêsames à esposa e às filhas, que se encontravam pesarosas sentadas a um canto. Depois foi para a rua dar à língua com os colegas que entretanto iam chegando. Foi aí que soube de que morrera o Diamantino. Mal avistara o Pereira encostado a uma esquina da capela a soprar o fumo de cigarro para os sapatos, foi ter com ele e perguntou se ele sabia. Afinal, que diabo, era indelicado perguntar à família. O Pereira, colega também reformado do batalhão, informou-o da causa. Ouvira falar numa trombose. E ali estiveram a trocar impressões acerca da transitoriedade da vida enquanto o padre não vinha levantar o corpo e levá-lo para a igreja onde se ouviria missa de corpo presente.

O comandante do batalhão enviou uns quantos praças no activo e convenientemente fardados que ajudaram o cangalheiro a transportar o caixão para o carro funerário. O Fontes viu-os depois pelo canto do olho a limparem as mãos com nojo à farda, como se ao caixão se tivesse pegado algum pedaço do morto ou este se tivesse começado a desfazer como a manteiga ao lume. Estava calor, é certo, e o Fontes suava um pouco dentro do fato preto. Mas nada que se pudesse comparar se estivesse fardado com a farda de cerimónia, o barrete, as luvas e as botas de cano alto enfiado dentro de um caixão.

O enterro, já no cemitério, correu como o previsto, sem faltarem os gritos histéricos da viúva e as lágrimas discretas mas visíveis das filhas ainda solteiras abraçadas aos namorados que as apalpavam a modos de consolo.

José Leon Machado

Nasceu em Braga, Portugal, em 1965. É professor de Lingüística na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Dentre suas obras de ficção já publicadas, destacam-se O guerreiro decapitado (romance, Campo das Letras, 1999); Fluviais (contos, Campo das Letras, 2001; Grande Prémio ITF 2002); Os incompatíveis (contos, Campo das Letras, 2002; Prémio Edmundo Bettencourt 2001); Braços quebrados (romance, Edições Vercial, 2003); O construtor de cidades (romance, Edições Vercial, 2004); e Não me guardes no coração (romance, Pena Perfeita, 2005).

Rascunho