A Norma

Conto de Paulo Krauss
Ilustração: Daniel Klein
01/07/2004

“Empacotador Eduardo, favor dirigir-se à subgerência.”

Bom tarde, eu sou o Eduardo, fui chamado pelo alto-falante.

Ah, sim. É que temos um recado para o senhor. Ligaram de sua casa.

Eh?

Bem, não é uma notícia agradável, mas o senhor sabe, o supermercado tem como procedimento passar aos funcionários todos os recados recebidos.

Tudo bem, pode dizer.

Sua mãe faleceu.

O quê? Como assim?!

Não sei exatamente senhor Eduardo. Alguém ligou. Uma senhora. Disse que precisava falar com o senhor com urgência. Expliquei a ela que nosso regulamento interno não permite que os funcionários atendam telefonemas durante o horário de serviço, mas que estávamos à disposição para repassar recados. A senhora então pediu para avisá-lo que sua mãe faleceu, e mais não disse.

Mas, como assim, por quê, o que aconteceu?

Não sei, senhor, como disse, o recado foi apenas que sua mãe faleceu.

Eu tenho que ir para casa.

O senhor sabe, o regulamento interno só permite que o senhor falte ao serviço se avisar com um dia de antecedência, ou se o senhor tiver algum problema de saúde emergencial durante o expediente, neste caso nosso médico…

Mas eu não sabia que minha mãe iria morrer, como eu poderia pedir dispensa com antecedência?

Como eu estava dizendo quando o senhor interrompeu, o senhor só pode deixar o serviço durante o expediente caso tenha algum problema de saúde emergencial, e neste caso terá que ser examinado pelo nosso médico para que sua dispensa seja autorizada.

Eu não estou doente.

Então o senhor não pode deixar o serviço. Pode apenas requisitar uma dispensa para amanhã.

Mas minha mãe morreu hoje. Eu não sei o que aconteceu. Eu preciso ir para casa.

O senhor terá então que fazer este pedido diretamente ao gerente geral.

Onde ele está?

Está em seu escritório.

Quero falar com ele.

Ele tem um horário disponível amanhã, às onze e meia.

Mas eu preciso falar com ele agora.

O supervisor geral só atende reuniões marcadas com um dia de antecedência.

A senhora não entende, minha mãe morreu hoje.

Entendo, senhor Eduardo. Mas não há nada que eu possa fazer, tenho que seguir o regulamento interno.

Se a senhora morresse hoje, o que acharia se seu filho não pudesse sair do serviço por causa de um maldito regulamento interno?

Meu filho está desempregado. Trabalhava no banco havia sete anos, mas eles fizeram cortes e…

Se eu não posso sair, por que a senhora me contou que minha mãe morreu?

O supermercado tem como procedimento passar aos funcionários todos os recados recebidos, está no regulamento interno.

Dane-se o regulamento interno, eu vou para casa.

É meu dever informá-lo que será despedido se o fizer, o regulamento interno prevê que…

Dane-se o regulamento interno. Então eu peço demissão.

Isso é possível, mas mesmo assim o senhor não poderá sair, terá que cumprir o aviso prévio de 30 dias.

Droga, mas eu quero pedir demissão justamente para ir embora agora. Minha mãe morreu. Eu preciso ir embora agora. Não quero sair do emprego, mas preciso ir para casa.

Como disse, em caso de pedido de demissão o senhor tem que cumprir o aviso prévio de 30 dias.

E se eu não cumprir?

O senhor terá que pagá-lo.

Isto está no regulamento interno?

Não, mas é lei.

E qual é a lei que diz que um funcionário não pode ir para casa quando a mãe morre.

Desconheço se existe tal lei, mas, com certeza, está em nosso regulamento interno.

Dane-se tudo, eu vou embora.

O senhor precisa assinar seu pedido de demissão sem cumprimento de aviso prévio, caso contrário será um abandono de emprego.

E qual a diferença?

Com o pedido de demissão, o senhor ainda resguarda alguns direitos. Se abandonar o emprego, a situação é grave.

Eu assino.

Aqui estão os papéis, senhor Eduardo. Desculpe a demora, mas precisei de alguns minutos para preparar o documento.

Não precisa pedir desculpas por causa disso. Minha mãe morreu e sou obrigado a pedir demissão para ir para casa, isso sim é um absurdo.

O nosso regulamento interno determina que devemos sempre pedir desculpas pela demora quando não atendemos de imediato a um pedido de cliente ou de funcionário.

É um regulamento interno e tanto.

Não sei senhor, mas temos que segui-lo.

Adeus.

Adeus, senhor Eduardo. Lamento que tenha pedido demissão.

A senhora devia lamentar era a morte de minha mãe.

Lamento por isso também, mas, se não tivesse pedido demissão, o senhor teria direito a um auxílio funeral. Nosso regulamento interno prevê um auxílio de 100% dos custos funerários para funcionários, e de 50% para parentes diretos.

Então espero que sua mãe morra logo, assim poderá usar seus cinqüenta por cento.

Minha mãe faleceu há oito anos, quando eu não trabalhava aqui. O regulamento interno prevê que o auxílio funeral só seja concedido para os falecimentos ocorridos a partir da contratação do funcionário.

Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho